A cidadania ativa é um conceito que está presente, ainda que pouco ativo, perante o paradoxo que a própria democracia em si representa: podemos escolher mas não sabemos o quê, ou como escolher, e há muito que deixámos de compreender o verdadeiro sentido da soberania popular porque, afinal, eles fazem o que querem.
Nem sempre são necessárias crises ou cataclismos, mas momentos como o que vivemos atualmente em Portugal fomentam a ação, mesmo dos que se deixaram encantar pelo laisser faire, laisser passer que também a revolução francesa implementou. O João Pina — ou @tomahock no Twitter — não deixa andar e faz. Criou um site que "dá baile" às autoridades competentes na matéria e que, na noite de Domingo, esteve perto de crashar por força do número de acessos para acompanhar os incêndios em Portugal.
Programador de profissão, criou o fogos.pt em 2015, numa altura em que a informação sobre os incêndios era disponibilizada em PDF. Arcaico, mesmo para aquela altura. Bem sei que compilar e apresentar informação complexa, de uma forma simples para o utilizador, é uma das tarefas mais difíceis na estrutura de uma página web mas, se um programador, sozinho, faz um fogos.pt, o que andam as organizações do setor a fazer?
Estrategicamente, pouco, e no momento que importa, ainda menos. Também sei que a web tem sido a última das preocupações de organizações desta natureza, mas é urgente absorver o choque tecnológico e adaptarmo-nos às características da sociedade em que vivemos. A génese do site resulta de uma conversa entre amigos, que desabafavam sobre a necessidade de acederem à informação de forma simples e rápida.
Com umas linhas de código, @tomahock começou a resolver o problema, apresentando a informação de forma direta, facilitando os processos. Poucos cliques. Como deve ser a comunicação em contexto digital. O site fogos.pt usa a informação disponibilizada pela ANPC, disponibilizando-a online, na aplicação iOS e Android, com sistema de notificações e alertas, ao mesmo tempo que comunica através do site, das redes sociais e do correio electrónico.
Para quem acha que tudo isto é simples, não é. Programar um site ou uma aplicação móvel não é a mesma coisa e a criação de aplicações para sistemas operativos diferentes também implica conhecer linguagens diferentes, bem como a aquisição de licenças para as publicar na AppStore e Google Play. No processo, @tomahock admite usar algumas algumas ferramentas da comunidade, mas foram todas programadas e desenvolvidas por ele, com o objetivo de ajudar quem, no terreno, precisa de informação em tempo real.
Tudo começou há três Verões e, ao longo deste tempo, o site tem sido optimizado (SEO) para direcionar para o fogos.pt as pesquisas no Google relativas a incêndios. No passado domingo foram mais de 10 mil acessos simultâneos ao site, ultrapassando os limites de pageviews do site.
Uma vez que este está associado ao Google Maps que, por sua vez, associa os acessos para cada visitante do fogos.pt, tal significa que, quanto maior o número de acessos ao mesmo tempo, maior o número de solicitações à Google, até ao limite da quota disponível para este site. O acesso paga-se (e bem!) e, na noite de Domingo, @tomahock apelou à comunidade para disponibilizar acessos, através de outras contas, para manter o site a funcionar. O Twitter revelou-se uma máquina de comunicação solidária com centenas de keys (acessos) diferentes, alguns dos quais criados por pessoas que foram, propositadamente, criar (e aprender a fazer, porque estamos num domínio de “developers” que não é o mesmo que criar uma conta no Gmail) estas keys para ajudarem a manter o site ativo. Estamos a falar de cidadãos que se envolvem, que se mexem e, com isso, contribuem para uma sociedade melhor.
Estou — estamos, creio — grata por existir um João Pina que dedica parte do seu tempo a ajudar os outros, provando que há mais na tecnologia para além de utilizadores fanáticos de Facebook e que esta, como qualquer arma ou ferramenta, tem um potencial enorme para melhorar a vida em sociedade.
No entretanto, a própria Google apercebeu-se da situação e ampliou os limites da conta do fogos.pt. Se isto não é mobilização pela tecnologia, e esta ao serviço do bem, não sei o que será.
Agora vão e aprendam a criar keys, em vez de passarem o tempo a espreitar e comentar a vida dos outros nos sites e redes sociais. Nunca se sabe quando pode ser preciso ajudar...
Paula Cordeiro é Professora Universitária de rádio e meios digitais, e autora do Urbanista, um magazine digital dedicado a dois temas: preconceito social e amor-próprio. É também o primeiro embaixador em língua Portuguesa do Body Image Movement, um movimento de valorização da mulher e da relação com o seu corpo.
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