Veja-se por que lado se veja, a Uber é um fenómeno. Inventada em 2009 por dois jovens, Travis Kalanick e Garrett Camp, criou um novo modelo de negócio, utilizando de uma maneira criativa várias tecnologias já disponíveis. Foi aquilo que os americanos chamam de “game changer”, classificação que se aplica a poucas pessoas, como Johannes Gutenberg, ao inventar a impressão mecânica, em 1440, Henry Ford, ao criar a linha de montagem, em 1913, ou o esquecido William Brockedon, que inventou o comprimido feito à máquina, em 1843. (Há dezenas mais, uns mais importantes do que outros, mas não vamos aqui entrar nessa interminável avaliação.)
Não surpreende que a Uber, que opera em 633 cidades espalhadas pelo mundo, valha setenta mil milhões de dólares.
O que é mais surpreendente são os mares agitados por onde este grande sucesso comercial tem navegado. Não estamos a falar dos problemas legais e sociais com o mercado dos táxis, multiplicado pela falta de legislação para um negócio completamente novo. Em nenhum país as leis previam o modelo inventado pela empresa e a resposta varia conforme o estilo de Estado de cada um deles. (Em Portugal, por exemplo, a legislação arrasta-se interminavelmente pela Assembleia da República, sem ninguém querer assumir nada e com os interesses políticos a sobreporem-se aos dos utilizadores e profissionais. O costume.)
Não estamos então a falar das tempestades que acossam a Uber, conhecida pela sua postura agressiva e pelo pouco cuidado com os aspectos legais; estamos a referir-nos aos problemas dentro do barco. A começar pelo timoneiro, Kalanick.
Para começo de conversa, convém lembrar que a Uber, apesar do seu valor mirabolante, conseguiu manter-se uma empresa privada, isto é, sem acções cotadas na bolsa – o que lhe tem permitido ocultar muita informação interna. Tem bastantes accionistas, alguns dos quais muito grandes e poderosos, como se verá. Estão representados numa Assembleia de Sócios (“board”) que era, até há dois meses, presidida por Kalanick. (O outro fundador, Camp, diz-se que esteve ausente durante estes anos todos, reaparecendo agora para defender o amigo.)
Há cerda de dois anos que surgem esporadicamente notícias de que os motoristas da empresa trabalham em más condições. Tem havido greves em algumas cidades e ameaças de greve noutros mercados. Embora a questão não seja completamente clara, uma vez que há vários tipos de contratos entre a Uber e os operadores (que podem ser individuais ou empresas), persiste a impressão que há algo de capitalismo selvagem no modelo de negócio. O último escândalo que foi tornado público é que a empresa usou esporadicamente um software secreto, “Greyball”, para que os motoristas evitassem agentes da autoridade nas cidades onde estão proibidos.
Mas foi em Fevereiro deste ano que a situação realmente se deteriorou, quando uma engenheira da sede, em São Francisco, veio a público acusando um gerente de assédio sexual. Imediatamente se ficou a saber que os casos eram múltiplos, que a gerência sabia e não fazia nada e, finalmente, que o próprio Kalanick fazia parte da gangue de machos.
A Assembleia de Sócios contratou o ex-ministro da Justiça de Obama, Eric Holder, para conduzir uma investigação externa sobre as práticas dentro da empresa, numa tentativa de melhorar a sua imagem. Mas, mesmo antes do relatório de Holder – que acaba de sair – a situação de Kalanick tornou-se insuportável. Recorde-se que entre o s sócios da UBER estão nomes como o de um fundo saudita de investimentos, os mega-fundos americanos Benchmark e TPG Capital, e até Adriana Huffington, a fundadora do Huffington Post.
Kalanick acabou por pedir “licença por tempo indeterminado”, que se traduz de facto no abandono definitivo da direcção na empresa. Com ele saíram mais de vinte gestores envolvidos em casos de assédio, inclusive o gerente para a Ásia, acusado de ter obtido ilegalmente o relatório médico de uma rapariga violada por um motorista na Índia.
A Assembleia de Sócios começou então a procurar um novo director executivo – um processo que normalmente decorre discretamente, sobretudo numa empresa não cotada, mas que na UBER tem sido acompanhado diariamente na praça pública.
Inicialmente havia dois candidatos conhecidos e um terceiro misterioso. Os conhecidos eram Meg Whitman ex-administradora do EBay e actualmente a dirigir a Hewlett Packard, e Jeff Imelt, ex-administrador da General Electric.
Sabia-se que os votantes estavam divididos em dois grupos, um dos quais ainda influenciado por Kalanick, que gostaria de regressar e que apoiava Imelt. O outro grupo, dirigido pela Benchmark, era por Whitman.
Este domingo, surgiu o nome do terceiro candidato, com a notícia de que foi ele o escolhido. Trata-se de Dara Khosrowshahi, administrador do site internacional de reservas hoteleiras, Expedia.
Para o público, este iraniano-americano de 48 anos é praticamente desconhecido. Mas os círculos de negócios conhecem-no bem e receberam a escolha da melhor maneira, assim como os funcionários da Uber.
Khosrowshahi nasceu numa família persa abastada, que imigrou para os Estados Unidos quando os seus bens foram nacionalizados em 1978, tinha ele nove anos. Casado, licenciado em engenharia electrotécnica, passou por várias posições de gestão antes de transformar a Expedia numa rede presente em 60 países. Em 2015 a empresa deu-lhe um bónus de 90 milhões de dólares pelos serviços prestados. Mas o seu principal valor no mundo empresarial é uma enorme teia de contactos de alto nível, todos eles admiradores da sua postura e métodos de trabalho.
Khosrowshahi tem um pesado caderno de encargos pela frente. Tem de reorganizar os 15 mil funcionários da empresa no mundo, expurgando as más práticas, incluindo, evidentemente, o dito machismo dominante. Precisa de resolver os problemas com os motoristas de um modo consistente, considerando alguns pedidos, como o da inclusão de gorjeta nas tarifas. E tem todos os processos da Uber para litigar, como os que opõem a empresa à Google e à Waymo no que respeita a patentes do carro sem condutor.
Os gestores consultados pelos órgãos de comunicação norte-americanos são unânimes em considerar que Khosrowshahi está à altura do tarefa. Uma coisa parece certa; por mais complicada que seja a vida da empresa, o negócio continua em expansão. Até que alguém invente outro “game changer”, evidentemente.
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