O Apocalipse é o último livro da Bíblia cristã e, como todos os textos evangélicos, há uma nunca esclarecida confusão sobre quem o escreveu, em nome de quem, e com que fins. Para não entrarmos aqui numa discussão teológica, fora das nossas capacidades e do interesse dos leitores, basta dizer que o conceito de Apocalipse envolve o fim do mundo duma forma violenta. Há versões em grego e aramaico, atribuídas ora a Pedro , ora a João, sendo que não foram escritas por nenhum deles – são os chamados textos pseudoepigráficos, uma palavra que o eminente classista Eduardo Lourenço considera ser uma forma bonita de dizer falsificações.
O que interessa é que, durante os primeiros tempos do cristianismo – até aos séculos II e IV, mais ou menos – enquanto se discutia e decidia o que deveriam ser as Escrituras oficiais, o Apocalipse, isto é, o fim do mundo, era considerado como um acontecimento iminente. Depois, à medida que os séculos passavam e nenhuma das desgraças que aconteciam às civilizações tinham massa crítica suficiente para serem consideradas apocalipses, os crentes foram abandonando o temor dessa ameaça. Contudo, as grandes catástrofes, naturais ou provocadas por homens, ganharam o adjectivo “apocalíptico”, geralmente com exagero. Ao mesmo tempo, a ideia de Apocalipse foi por assim dizer dessacralizada: o fim do mundo não seria um acto divino, mas sim humano.
Durante a Guerra Fria, o período que vai de 1945 a 1989, surgiu uma nova ideia de Apocalipse: a destruição do mundo pelas armas nucleares. Toda a gente viu o efeito das bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki; e tanto norte-americanos como russos começaram a fabricar bombas cada vez mais potentes e mísseis capazes de as levar a qualquer ponto do planeta. O perigo era real, pois o desencadear do Apocalipse Nuclear dependia de peripécias sempre obscuras e periclitantes da política entre as duas grandes potências.
Esta situação está magnificamente relatada num dos dez melhores filmes de sempre, “Dr. Strangelove”, dirigido por Stanley Kubrick, em 1964. Mas a chamada “crise dos mísseis de Cuba”, em 1962, não foi nenhuma ficção e só a consciência dos responsáveis de parte a parte (Kruschev e Kennedy) travou o Apocalipse.
A Suíça, que já tinha construído abrigos anti-bombas durante a II Guerra Mundial, actualizou o seu equipamento; é, até hoje, o único país do mundo que tem abrigos para toda a população.
Na Suécia, o Estado também tomou conta da situação e construiu, ou incentivou a construção, de milhares de abrigos. São actualmente mais de 65.000 e podem abrigar 81% da população. Na Finlândia há abrigos para 70% dos habitantes. Na Áustria a cobertura vai aos 30%, mas na Alemanha não chega aos 3%.
Fora da Europa, há abrigos na China, Coreia do Sul (e, quase com certeza, do Norte), Singapura, Índia, e mais um pouco por toda a parte, mas que certamente só protegem adequadamente os dirigentes. Mesmo Israel, um país cercado de inimigos, não terá abrigos para toda a gente.
Nos Estados Unidos, na década de 1950, o Estado construiu abrigos enormes para os órgãos de soberania e serviços estratégicos, mas considerou que não tinha fundos para proteger toda a gente, pelo que incentivou a construção de abrigos domésticos. No auge da crise da Guerra Fria, na década de 1960, calcula-se que esses abrigos cobriam apenas uma pequena parte da população e, o que era mais assustador, não tinham condições reais de aguentar um impacto nuclear.
Podia pensar-se que, terminada a Guerra Fria, os abrigos seriam abandonados ou usados para outros fins – como na Suíça, onde guardam arquivos bancários e alguns até foram convertidos em hotéis. Ou na Suécia, onde são estacionamentos subterrâneos e armazéns. Em ambos os casos prontos para ser reconvertidos em caso de susto.
Todavia, neste começo do século XXI mudou mais uma vez o conceito de Apocalipse; poderá ser atómico, mas também ambiental, ou vindo do cosmos – um cometa, por exemplo. Também há o perigo de epidemias aterradoras que podem criar seres horríveis, como na série “The Walking Dead” e em incontáveis filmes distópicos pós-catástrofe nuclear, ou de situações criadas por uma desgraça qualquer, em que os governos desaparecem e gangues bárbaros dominam a paisagem.
O perigo nuclear não está afastado, antes pelo contrário, à medida que a tecnologia embaratece e chega a países cujo sentido de responsabilidade é menos confiável. Mas o que parece preocupar as pessoas, sobretudo aquelas que não têm mais nada com que se preocupar, é um perigo indefinido, polifacetado, com cenários de caos e duma luta pela vida semelhante aos tempos pré-históricos e da antiguidade.
As mais comedidas, vêem com receio a radicalização da sociedade e a degradação das condições naturais como o caminho muito provável para épocas de grande carência e violência.
Se o mundo está a caminhar para uma era desolada e anárquica, é uma questão académica para a maioria da população, uma vez que não tem meios para se proteger dessa eventualidade. Mas os ricos, e sobretudo os muitos ricos, podem defender-se activamente, construindo fortalezas/abrigos que os isolem de qualquer problema, social ou ambiental. E, já agora, que mantenham os confortos da sua vida presente.
Surgiu assim uma indústria formidável, pouco conhecida, mas que envolve milhares de milhões por ano. Várias empresas de âmbito internacional dedicam-se a planear estas instalações simultaneamente distópicas e utópicas, de acordo com as técnicas mais avançadas e as especificações dos compradores.
Uma delas é a Atlas Shelters, cujo mercado são os menos abonados, aqueles que preferem gastar o dinheiro duma segunda residência modesta num bunker. Normalmente a empresa constrói nos terrenos duma residência, como se fosse um armazém no jardim, mas também em áreas remotas, que supostamente seriam pouco afectadas por uma catástrofe provocada pelo Homem. Nos Estados Unidos, onde parece haver mais tementes do fim do Mundo, o deserto do Arizona ou o Colorado são estados apetecíveis.
Mas há quem queira o seu abrigo mesmo olho do furacão, como este homem que pagou 18 milhões de dólares para viver a sobrevivência no fundo do quintal.
A Atlas já tem abrigos prontos, alguns para várias famílias, no Texas e na Califórnia. Mas não se julgue que esta é mais uma mania dos norte-americanos com dinheiro para atirar pela janela – ou enterrar num buraco.
O abrigo Vivo, em Rothentein, na Alemanha, custou mil milhões e vende apartamentos a cinco milhões de euros.
Na República Checa, o Oppidom é considerado o maior do mundo, com trinta mil metros quadrados.
Na Polónia, a Safe House está à superfície e procura conciliar as necessidades de segurança com uma arquitectura moderna – parece mais um conceito estético do que uma defesa adequada. Mas, tal como a vida eterna, só se saberá se funciona quando for tarde demais...
É de calcular que existam abrigos em muitas propriedades por esse mundo afora, feitos de acordo com as possibilidades e os medos específicos dos proprietários; podem ser à prova de bomba atómica, mas também de desastres ambientais ou guerra química, de invasão dum inimigo terrestre ou galáctico, de guerra civil... Provêem não só a sobrevivência dos felizes residentes durante meses ou anos, como lhe proporcionam higiene, lazer e projectos com que se manter ocupados. As crianças podem brincar em piscinas com escorregas, enquanto os adultos jogam bowling ou vêem televisão para saber o que se passa “lá em cima”.
São mansões de luxo, dum nível que mesmo pessoas com posses substanciais não podem manter à superfície. E permitem, me certos casos, uma vida comunitária entre centenas de famílias, com crianças a crescer e a frequentar a escola.
Mas o país de eleição é, como dissemos, a Nova Zelândia, onde Peter Thiel mandou construir um refúgio paradisíaco em Queenstown, que até inclui uma “sala de pânico”. (Quem não sabe o que é, veja o filme homónimo, de David Fincher, 2002, com Jodie Foster). Custou uns meros quatro milhões de euros.
O construtor Gary Lynch, da Rising S Company, que já fez várias construções semelhantes, disse à Bloomberg que o país é ideal porque não é inimigo de ninguém, não constitui um alvo nuclear ou militar e fica fora da “linha de fogo” de todos os conflitos imagináveis. O terreno é barato, as paisagens belíssimas e o Estado favorece o investimento estrangeiro em propriedade.
Do ponto de vista da auto-preservação, não há nada que impeça uma pessoa muito rica de gastar fortunas para proteger os seus dum hipotético Apocalipse. Agora, em termos pragmáticos, fica por esclarecer o que farão essas pessoas num mundo sem as condições em que vale a pena viver. Todos gostamos de saborear este fim de civilização, o que não quer dizer que queiramos amargar o princípio doutra – sem lei nem ordem, sem consumo supérfluo e sem wi-fi...
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