Esta semana foi marcada pelo acidente com a avioneta na Caparica. Como sempre, o foco rapidamente passa de tentar perceber o que correu errado para um acontecimento paralelo que incendeia as redes sociais, que deviam vir com o símbolo de «Perigo! Inflamável!». Refiro-me, claro, ao vídeo do pai da criança de oito anos que morreu e que ficou viral na Internet com milhares de partilhas e comentários pouco abonatórios para o pai da criança. Para os juízes de sofá – algo que todos somos um pouco – há as seguintes opções:
1. O pai é maluco.
2. O pai não gostava assim tanto da filha.
3. É o padrasto.
4. O pai é psicopata.
5. O pai estava em choque.
Qualquer uma das hipóteses é possível, mas eu vou mais pela última. Acho que o cérebro daquele pai entrou em modo de sobrevivência e ele ainda nem tinha caído em si porque a realidade era demasiado abrasiva para a encarar. Óbvio que o senhor tem um discurso estranho para quem acabou de ver a cabeça da filha espalhada pelo areal, mas, felizmente, nenhum de nós sabe como reagiria numa situação dessas e, digo eu, que se deve dar o benefício da dúvida ao senhor em vez de destilar ódio numa situação destas. Quão merda foi dita? Vejamos alguns exemplos:
Só especialistas em paternidade e em empatia com o sofrimento alheio. Garanto-vos que são as mesmas pessoas que dizem que com coisas sérias não se brinca. Também não sou psicólogo, mas diria que o mais normal é que ele tenha ficado em choque e isso percebe-se pela própria linguagem técnica que ele usa, dizendo a filha foi colhida pela aeronave e que quando ele foi lá ela já estava cadáver. Parece-me mais choque do que o senhor ser médico e gostar de explicar as coisas em termos técnicos que ninguém percebe só para se armar. Vamos ver mais uns comentários:
Já bolçaram na própria boca com este nojo de gente que não tem mais nada do que fazer na vida do que debitar merda nas redes sociais? Repararam que têm todos o mesmo apelido? A consanguinidade é tramada. Se eu disser que o acidente só aconteceu porque as crianças quando ouvem «Olha o avião!» estão habituadas a levantar a cabeça e a abrir a boca sou um monstro psicopata, mas estes montes de merda que manifestam - mesmo - a sua opinião e cuja intenção é apenas e só pontapear a cabeça de quem está no nível mais alto de sofrimento que um ser humano pode estar, é normal. Sim, as opiniões são como as vaginas, algo que para quem faz estes comentários ou não as usa bem ou nunca as viu sem ser no computador.
Não digo que o vídeo não tenha uma certa piada pelo quão surreal é, tal como todos nos rimos aquando daquela «Ahhhh… informação… dramática» proferida por um senhor ao qual a mãe tinha sido assassinada há momentos. No entanto, fica no ar a questão: aquilo é jornalismo ou é falta de noção do que é ser-se jornalista? Teve de vir um amigo (suponho) a afastar o senhor, tapar a câmara e mostrar a decência que os jornalistas não foram capazes de ter. Há amigos normais e depois há amigos a sério que nos tiram a chave do carro quando veem que estamos com uns copos a mais. Ficamos irritados com eles a balbuciar que estamos bem, mas na manhã seguinte vamos estar-lhes gratos. Certo que foi o pai da criança a querer falar e disse que se desligassem ia para a CMTV e que a jornalista tentou, mais ou menos, terminar a entrevista mais cedo. Ainda assim, pareceu-me um abutre tímido no funeral de uma gazela «Ah, não sei se vá lá tirar um bocado do cadáver para mim ou não, não conheço ninguém nesta festa e fico com vergonha.». Percebo que na cabeça dela, naquele momento, cortar a palavra ao pai da criança pudesse ser um desrespeito maior do que deixá-lo dizer barbaridades. Se fosse a Judite de Sousa um gajo já sabia a intenção, assim sinto-me na obrigação de dar o benefício da dúvida.
A cobertura jornalística deste evento devia ser a seguinte: «Morreram duas pessoas na praia devido a uma aterragem de emergência de uma avioneta. As autoridades vão investigar e voltamos ao assunto assim que houver novidades.» Está feito. Era isto. Trinta notícias seguidas com detalhes sobre o modelo do avião e com opiniões de especialistas em coisa nenhuma sobre se uma amaragem devia ter sido feita quando nem se sabem os detalhes? Tenham juízo. É essa sede de clicks e de sensacionalismo que depois leva a entrevistas como a do pai da criança que morreu. Os jornais são o reflexo da sociedade e, por isso, não é de estranhar os relatos de que na praia havia gente a tirar fotos e a fazer vídeos dos cadáveres despedaçados, só porque a moda da foto dos pés na praia já está muito batida e o que dá likes agora é foto do pé na mioleira de criança. É o sinal dos tempos que nos faz crer que caminhamos para um cenário Black Mirror.
De resto, nada a dizer. Ainda bem que não foi comigo até porque eu tenho medo de andar de avião e era uma ironia do caraças levar com um na pinha enquanto estou na praia. É tempo de perceber o que aconteceu e ter calma nos julgamentos sumários dos pilotos porque, provavelmente, qualquer um de nós que estivesse aos comandos de um avião em queda não tinha problemas em terraplanar pessoas para nos salvarmos. Por muito que nos julguemos seres evoluídos, no fundo somos macacos com smartphones, com instinto de sobrevivência e pouca queda, passe a expressão, para atos heroicos.
Sugestões e dicas de vida:
Um álbum: Slow J - The Art Of Slowing Down
Um livro: Com o Humor Não se Brinca - de Nélson Nunes
Um filme: The Man From The Earth (saquem da net, mas não digam que fui eu que disse)
Comentários