A vida política em Israel está partida em duas metades irreconciliáveis: uma é a formada pela direita mais ultranacionalista encabeçada pelo veterano Benjamim Netanyahu, e a outra é uma vasta coligação que tem como principal ponto comum a postura anti-Netanyahu; esta é uma coligação liderada pelo centrista Yair Lapid e inclui oito partidos que vão da direita à esquerda pacifista, passando pelo centro, pelo trabalhismo e até por um partido da minoria árabe – os árabes representam atualmente 20% da população de Israel.
As sondagens estão a colocar na frente da corrida eleitoral, com maioria absoluta (62 dos 120 deputados), o bloco ultranacionalista de Netanyahu, o ex-primeiro-ministro que agora procura renascer das cinzas do processo de corrupção em que foi acusado e pretende ampliar o recorde de 13 anos a chefiar o governo israelita.
Perante o crescendo de Netanyahu, assente no discurso da intransigente firmeza na defesa dos interesses de Israel, a ampla coligação liderada pelo atual primeiro-ministro Lapid é tentada a demonstrações de força. Foi o que aconteceu na passada sexta-feira quando as forças armadas de Israel abriram bombardeamentos que designaram de cirúrgicos contra a Jihad islâmica Palestina, na Faixa de Gaza.
Há aqui uma novidade: os ataques desencadeados por Israel nos últimos 15 anos na Faixa de Gaza tiveram sempre por alvo o Hamas, a força que governa o território.
Desta vez o alvo seletivo foi a Jihad Islâmica Palestina, um grupo radical, classificado de terrorista, pró-iraniano e que se supõe contar com cerca de mil homens (não há mulheres) nas milícias.
O Hamas, movimento financiado meio às escondidas pelo Qatar e inspirado no islamismo político no poder na Turquia, governa Gaza desde o triunfo nas eleições de 2006 que deixaram a Fatah (o movimento que era de Arafat e agora liderado pelo quase arqueológico Abbas) com insignificante peso político no território.
O Hamas é inimigo n.º 1 para Israel e é mal tolerado pela Fatah que comanda a partir de Ramalá a Autoridade Nacional Palestiniana, espécie de governo da Palestina. Mas, desta vez, Israel quis não atacar diretamente o Hamas, talvez por não querer abrir nova guerra total com quem tem o poder em Gaza. O governo israelita foi explícito a avisar que apenas “pretendia remover uma ameaça concreta contra os seus cidadãos” constituída da Jihad Islâmica da Palestina.
Os caça-bombardeiros israelitas entraram em ação ao começo da tarde da passada sexta-feira, 5 de agosto. Desencadearam o que chamam de “assassinatos seletivos”: um míssil israelita atingiu em cheio a casa de Al Yabari, chefe militar da Jihad na zona norte da Faixa de Gaza. O prédio de quatro andares desmoronou-se. Mas nesse edifício também viviam pessoas que nada têm a ver com o combate armado. Dunia al Amour, 60 anos, e a neta Alaa, com 5 anos, também ficaram com a vida soterrada naquela tarde.
Israel pôs o nome de Breaking Dawn a esta operação contra a Jihad na Palestina. Esse amanhecer na madrugada teve ataques idênticos sobre outros prédios que Israel considerou abrigarem gente da Jihad. Também caiu o edifício onde estava o comandante da zona sul de Gaza, Jalid Mansur. A Jihad que estava instalada em Gaza, com o Hamas a fazer de conta que não via, ficou decapitada. Mas aqueles ataques em série durante três dias (até à noite de domingo) mataram 44 civis, entre eles 15 crianças que nada tinham a ver com o conflito. E há mais de 300 feridos na sequência dos disparos israelitas e também do falhanço no lançamento de alguns dos cerca de 350 rockets que a Jihad lançou sobre o território de Israel, todos neutralizados. Apenas um desses disparos atingiu uma área residencial, em Ashkelon, no sul de Israel, mas caiu num jardim e foi inofensivo para a população que, preventivamente, se tinha fechado em casa com as sirenes de alerta.
A operação militar israelita, para além do ataque pelos céus sobre as cidades de Gaza, Rafah e Mansur, também avançou pela Cisjordânia, a Palestina governada pela Autoridade Nacional Palestiniana/Fatah: lançou sucessivas rusgas das quais resultou a detenção de dezenas de ativistas da Jihad.
Tanto o Hamas como o governo da Palestina na Cisjordânia limitaram-se a condenar esses bombardeamentos, as rusgas, as detenções e as mortes – em especial as de civis.
Tem significado relevante o facto de o Hamas se ter mantido alheio aos confrontos: mostrou que não quer a escalada da violência na Faixa de Gaza. Mais ainda: pré-coloca-se como parte em eventuais futuras negociações sobre a convivência na região, conforme o desejo expresso por Joe Biden na visita que há um mês fez à região.
O Hamas sente-se em vantagem sobre a Fatah na discussão necessariamente eleitoral sobre o futuro da Palestina. E acredita que o próximo governo de Israel, se não incluir Netanyahu, pode estar interessado em abrir negociações.
O atual governo de Jerusalem já deu alguns sinais de abertura: deu 14 mil autorizações de trabalho para que palestinianos de Gaza vão todos os dias a Israel e constituam mão de obra que faz falta à construção civil.
Também foi dada autorização para que doentes oncológicos de Gaza recebam tratamento em Israel.
Mas o facto de haver eleições em Israel em 1 de novembro faz pensar que o atual governo, embora queira usar como trunfo a capacidade para dialogar, também queira mostrar que é determinado a eliminar potenciais ameaças com base em território palestiniano. Portanto, são prováveis novos episódios de bombardeamentos e rusgas.
O mundo atual está desassossegado por guerras e conflitos vários que têm contribuído para deixar cair a Palestina na agenda noticiosa. Mas o conflito continua e agravou-se com a quebra da atenção diplomática e mediática.
Gaza é uma estreita faixa costeira com 320 km2; é o tamanho do território do município de Sintra — mas enquanto em Sintra vivem 400 mil pessoas, em Gaza vivem 2,3 milhões, das quais mais de 50% sem emprego (o desemprego jovem passa os 70%) e raros são os que têm liberdade para se movimentarem para fora de Gaza. Até a pesca é muito limitada, porque logo aparece a proibição aplicada pela marinha israelita.
A ONU adverte há muito que este território de Gaza, que a Amnistia e outras ONGs classificam como “prisão a céu aberto”, é um lugar que deixou de ser habitável. Tem grande escassez de água potável (muita da que existe está contaminada) e energia elétrica apenas em algumas horas de cada dia. Depende dos humores de Israel.
O Hamas conseguiu acumular considerável capacidade militar. Mostrou isso nas guerras com Israel em 2008-09, 2012, 2014 e 2019. Apesar do isolamento, o Hamas consegue sempre rearmar-se, supostamente através dos túneis construídos junto à fronteira de Rafah, com o Egipto. São ligações subterrâneas que os bombardeamentos israelitas tratam, sucessivamente, de destruir, mas que o Hamas, com os aliados da Irmandade Muçulmana do Egipto (triunfou nas eleições egípcias de 2012 após a queda de Mubarak, na sequência da Primavera Árabe, mas foi derrotada em 2013 pelo golpe militar do atual presidente Al Sissi), logo trata de refazer.
A dura realidade da vida no território de Gaza permite ao Hamas governar de modo autocrático. Tem o apoio popular que resulta de manter apoios vitais para a população. A liderança do Hamas tem evoluído para algum pragmatismo que procura abrir caminhos para as negociações que a ONU reclama com insistência, que a União Europeia diz serem necessárias embora nada faça para que avancem, e que os Estados Unidos propõem quando a administração é democrata. Mas que a linha dura de Israel consegue sempre sabotar.
Longe vão os tempos da mediação norueguesa que permitiram que em 13 de setembro de 1993, os então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, e o líder da OLP, Yasser Arafat, assinassem com Bill Clinton o Acordo de Paz que era suposto pôr fim ao conflito naquela região e abrir caminhos para a convivência entre judeus e palestinianos. Esse acordo foi tão histórico (Arafat, Rabin e também Shimon Peres receberam o Nobel da Paz em 1994) quanto efémero.
O assassinato de Yithak Rabin por um estudante judeu ortodoxo da extrema-direita israelita simbolizou a sepultura do espírito de acordo.
A questão palestiniana arrasta-se, porque Israel, sobrepondo-se à vontade do mundo expressa na ONU, se recusa negociar – e consegue impor essa vontade.
Israel é um país que viveu rodeado por inimigos em grande parte dos 74 anos de existência. É um país que se sente europeu, é muito mais rico, mais organizado e asseado que os vizinhos. É uma democracia parlamentar vigorosa e tem justiça independente – que já enviou para a prisão presidentes e chefes do governo de Israel apanhados em corrupção. É um dos nove países com arsenal atómico, mas que não consente esse poder a qualquer dos vizinhos.
Israel dá-se bem com a África do Sul. Na África do Sul, entre 1948 e 1991, a população negra e a outra não branca foi remetida para territórios semiautónomos onde podia fazer o quisesse, incluindo matar-se, com uma condição: a de não molestar a minoria branca que mandava no país. Esses territórios eram os bantustões. E o regime tinha o nome de apartheid, que foi heroicamente combatido por Nelson Mandela, que acabou por ter um aliado, Frederik W de Klerk, então na presidência do país. Mandela veio a suceder-lhe e a impor-se como líder mundial, o herói da reconciliação.
Israel tem promovido algo muito parecido com os bantustões da África do Sul do apartheid. Há uma diferença: a África do Sul instalou os bantustões dentro do país. Israel impõe esses bantustões num país que há mais de 70 anos luta pela independência, mas que está submetido à colonização, ao ultranacionalismo religioso e ao poder militar de Israel.
Israel poderia ser uma história exemplar de país se não fosse o terrível inferno que causa à Palestina. Mas a Palestina, apesar de negligenciada pelas atenções internacionais, existe e tem milhões de pessoas condenadas a inaceitável opressão. Biden, há um mês, quis lembrar ao mundo que a Palestina existe, mas não conseguiu ter força para além do gesto. Obama também não. A exceção foi, de facto, Clinton, embora o acordo que forçou tenha fracassado em menos de meia dúzia de anos.
A realidade mostra-nos que a questão da Palestina subsiste.
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