Sente-se por quase todo o lado que a prática política falha de espessura na exploração de melhorias na convivência humana. O sistema mediático também prefere a agressão à harmonia.

Quando a discussão que domina os serões na televisão desce para o nível rasca de saber se o patrão de um clube de futebol cuspiu ou atirou vapor para cima de um outro que o teria desafiado, estamos a deixar-nos empurrar para o esgoto. Antes tinham sido quatro semanas com o folhetim da caça ao homem. O nivelamento da agenda faz-se por baixo, a cultivar inimigos ou a contribuir para que se instale o medo.

O historiador romano Titus Livius, a quem coube educar o futuro imperador Cláudio, é autor de uma obra enorme em que trata de contar, em mais de 100 livros, a história de Roma desde a sua fundação em 753 a. C. até ao século I da Era Cristã. Livius, um humanista, citado por Dante, Voltaire e Montesquieu, escreveu que “o medo leva-nos sempre a ver as coisas pior do que o que elas são”. É uma ideia que será útil termos sempre por perto nas nossas ponderações de hoje. O medo é humano mas é desmoralizador. Com o medo não se vive em liberdade e a sociedade regride.

O medo parece estar a ser determinante nas eleições e referendos dos últimos meses. As primárias à direita neste último domingo em França trouxeram o que está a tornar-se hábito: o imprevisto ou até o impensável. O candidato, François Fillon, que há três semanas aparecia muito atrás em todas as sondagens, no quarto lugar entre sete candidatos, com Juppé e Sarkozy destacados na frente, é quem lidera com grande avanço e é favorito para a finalíssima do próximo domingo. Quem ganhar essa escolha tende a ser o adversário de Marine Le Pen na eleição presidencial francesa na próxima primavera.

Fillon tinha 10% das intenções de voto, saiu com mais de 40% da votação na primeira das duas voltas das primárias. Aparentemente, quase ninguém o viu chegar e passar à frente.

Sarkozy, o agitador, frenético como sempre, disputava o primeiro lugar mas parecia colocado em segundo. Acabou em terceiro e eliminado.

Juppé, o moderado, conciliador, com pose de estadista, era o favorito. Juppé é uma espécie de Marcelo, tem origem no centro-direita mas não é rejeitado ou até tem simpatias à esquerda, por isso era visto como o candidato mais forte para contrariar a escalada de Marine Le Pen, que aparece nas sondagens com 29%.

Fillon, representante sorridente de um ultra-catolicismo político e da direita conservadora sem complexos, admirador assumido do modelo Thatcher, consegue impor-se como o homem de ferro da revolução conservadora em França: propõe-se suprimir 500 mil postos de trabalho na função pública, passar a semana de trabalho de 35 para 39 horas, reduzir o gasto público, baixar impostos às empresas. Pretende recolocar a família e as empresas no centro das políticas públicas. Nas duas semanas antes desta eleição – sobretudo após o triunfo de Trump nos EUA – Fillon optou por um discurso de campanha contra o sistema político. Rendeu-lhe apoios. Conseguiu fazer esquecer que era o muito contestado primeiro-ministro nos cinco anos do repudiado Sarkozy. Fillon sai da primeira volta com 44% dos votos, 16 pontos percentuais de vantagem sobre Juppé, uma diferença de uns 600 mil votos.

Vai ser interessante seguir o debate entre os dois, Fillon e Juppé, nesta quinta-feira. Há um mérito nesta campanha da direita e centro-direita em França: estão a discutir ideias e modelos políticos.

E as esquerdas? Parecem fora de jogo. O socialista Hollande, em cinco anos na presidência, desperdiçou muitos dos 18 milhões de votos que o elegeram em 2012. O mesmo tinha acontecido cinco anos antes com o direitista Sarkozy. Em França a insatisfação derruba depressa os eleitos. A vaga está para o voto contra. Mas é improvável que os eleitores de esquerda se disponham a votar em Fillon mesmo que para barrar Le Pen. Esse voto de conveniência poderia funcionar com Juppé, tende a não funcionar com Fillon. Talvez seja a oportunidade para uma tentativa de novo fôlego dos socialistas, que têm primárias em janeiro. Talvez com o duro primeiro-ministro Valls. E há Macron que saiu de ministro da Economia para se meter pelo centro.

Faltam cinco meses para a eleição presidencial em França e o combate político promete ser intenso. É uma escolha que vai influenciar o rumo europeu. Todos estamos relembrados de que uma sociedade fechada gera intolerância e que o autoritarismo puxa violência. Sendo que a surpresa está a entrar no resultado de todas as votações.

Vale ter em conta:

Angela Merkel, com a austeridade era a madrasta, agora, desde há ano e meio, aparece quase como a princesa dos valores humanistas, das liberdades e líder da Europa contra o populismo agressivo. Após 11 anos na chefia do governo de Berlim candidata-se à renovação do mandato em setembro próximo.

A Hungria continua a ampliar muros. Já tinha levantado um muro com 175 quilómetros, agora acrescenta o que chamam de “barreira inteligente” com três metros de altura e 10 quilómetros de extensão. 

A purga conduzida pelo regime de Erdogan segue imparável. Não há lugar para quem pensa diferente.

Os escoceses insistem na ideia de independência, com saída do Reino Unido. Cresce a pressão para novo referendo.

Silence, o novo filme de Scorsese.

Primeiras páginas escolhidas hoje: esta do Libération que nos mostra numa montagem com humor eficaz o brushing impecável que põe Fillon=Thatcher; esta do The New York Times que nos remete para a pirataria que manda no Amazonas; e estas do As e da Marca com Cristiano Ronaldo de volta a casa.

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