Perante o maior protesto político interno na história de Israel, Netanyahu decidiu parar para ganhar tempo: pressionado até por gente do partido e do governo dele, o chefe da coligação que inclui partidos teocráticos anunciou o adiamento da votação da contestadíssima “reforma judicial” para somente depois da Páscoa. Mas a intenção, política e socialmente incendiária, não desaparece.

A democracia israelita, até aqui bem raro no Médio Oriente, atravessa uma crise sem precedentes nos 75 anos de história do país. Está a ser vítima das manobras do outra vez primeiro-ministro Netanyahu, agora à cabeça de uma inédita coligação de partidos religiosos alinhados na direita ultranacionalista. Querem todos eles acabar com a independência do poder judicial e submeter até mesmo o Supremo Tribunal à maioria política de ocasião (o ministro da Defesa, por discordar, foi exonerado).

As crises nas últimas décadas na história de Israel têm passado pelo relacionamento com os vizinhos árabes, a Palestina, o Irão e as ameaças terroristas. Agora, a crise é interna e gravíssima. É Israel em choque com Israel, porque a maioria (30 mil votos de vantagem, 64 dos 120 deputados) formada após as eleições de novembro decidiu mexer na essência genética democrática do Estado de Israel.

Um dos mais respeitados intelectuais de Israel, David Grossman, está a repetir; “Ao pretenderem subordinar a magistratura ao parlamento e ao governo, Israel corre o risco de deixar de ser democracia e passar a ser uma ditadura”.

Netanyahu está há vários anos a contas com a justiça, acusado de corrupção, fraude e abuso de poder. O que a maioria a que ele preside está a pretender expõe-no à suspeita de estar a servir-se do poder político que tem para garantir que nunca irá parar à prisão. Muito da população israelita tem essa perceção de que Netanyahu não tem em conta limites éticos.

É assim que desde o começo deste ano há multidões – praças e avenidas a abarrotar de manifestantes em Telavive e de outras cidades – que exigem o fim da chamada “reforma política do sistema judicial”.

Netanyahu argumenta que a maioria que conseguiu formar após as últimas eleições lhe dá legitimidade para aprovar esta “reforma”. A oposição e centenas de milhar de pessoas na rua entende que a volátil e inédita maioria formada não tem mandato para mudar os fundamentos democráticos do país.

Está assim pela primeira vez abalado o que até aqui aparecia como um milagre em Israel: a absoluta unidade nacional israelita sobre os pilares democráticos do país. A unidade ficou perdida pelos interesses conjugados de Netanyahu e de partidos religiosos, alinhados na extrema direita, que conseguiram formar maioria. O líder do segundo maior desses partidos na coligação teve de sair do governo por imposição judicial – conta com a alteração da lei para regressar.

No final desta segunda-feira em que muito povo esteve na rua em luta contra a “reforma judicial”, num movimento que pôs o país em greve geral (nenhum movimento aéreo no principal aeroporto, o Ben Gurion, em Telavive), Netanyahu viu-se na necessidade de combinar com o mais falcão dos ministros, Ben Gvir, do Interior, adiar para abril a votação das leis que ambos pretendem. Eles vão querer insistir. Mas estarão a reconhecer que subestimaram o forte respeito que o povo de Israel tem pelos pilares democráticos do país.

Há em Israel uma profunda aspiração democrática, embora predomine entre os israelitas o perturbador mau entendimento (com culpas várias, de diferentes lados) de outra questão séria, a da Palestina e dos palestinianos.

Talvez a atual crise possa propiciar a discussão sobre uma nova vida democrática na região, com todos.