Comecemos pela Turquia. A actual república, situada na península da Anatólia, é o resultado de transformações ao longo dos séculos, que culminaram em 1922, com a paz entre o que fora o Império Otomano e as potências europeias, e a subida ao poder de Mustafa Kemal Ataturk. O novo presidente, com poderes ditatoriais, oficializou o estado laico e procedeu a reformas profundas que incluiram os códigos civil e penal, educação a cargo do estado e, em geral, secularização das instituições nacionais. 

O que restava do antigo império, muito reduzido geograficamente depois da derrota da I Guerra Mundial, continha dezenas de grupos étnicos, que foram perseguidos, ou simplesmente ignorados, em nome da maioria turcomana (entre 70% e 90%, conforme as contas). Actualmente, as minorias reconhecidas são apenas os gregos, arménios, judeus e curdos (sendo que reconhecimento não quer dizer aceitação ou igualdade de direitos). A religião dominante é muçulmana, cujos princípios, mais ou menos obrigatórios conforme os sucessivos governos desde 1923, são seguidos de uma forma que nós, ocidentais, consideraríamos “suaves”; as mulheres votam e não usam véu, por exemplo. Os cristãos foram expulsos (quando não massacrados) em diversas purgas e não há templos de outras religiões. 

A ditadura militar de Ataturk e dos seus sucessores, oficialmente considerada uma república parlamentar, passou a um sistema fortemente presidencialista em 2018, com um executivo com grande poder, um parlamento partidário que ratifica as leis presidenciais e um judiciário basicamente dependente do executivo, uma vez que os juízes são escolhidos por ele. Estas reformas são obra do actual presidente, Recep Tayyip Erdoğan, que não só tem consolidado o seu poder através de eleições discutíveis como deu nova força ao islamismo tradicional. Mal comparando com a Hungria, a Turquia é uma “democracia iliberal”.

Em termos gerais, pode dizer-se que, desde Ataturk, o país oscila entre o desejo de ser “ocidental” e a vontade de manter os valores muçulmanos. Pertence às mais importantes instituições internacionais, como a ONU, OCDE e G20. As realidades da geopolítica — isto é, o medo do perene expansionismo russo, vivo no tempo dos czares, no estalinismo e agora no putinismo — levaram a que a Turquia aderisse à NATO em 1952, embora fosse um membro, por assim dizer ,“fora do baralho” em relação aos restantes. Aos Estados Unidos deu muito jeito ter mísseis nucleares tão perto da URSS — alguns retirados quando da crise de Cuba, em 1961 — e a Turquia precisava do poder “persuasivo” da NATO para manter os russos à distância.

Em 1963, o país apresentou a sua candidatura à Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia, mas as negociações têm marinado indefinidamente, dado que a Turquia não está geograficamente na Europa, não pratica os padrões democráticos e económicos da União e, para dizer com todas as letras, não é de confiança. Claro que a UE nunca cometeria a indelicadeza de dizê-lo, em nome do consenso frouxo que a caracteriza, mas Ankara já percebeu que nunca irá acontecer e deixou de insistir.

A crise provocada pela invasão da Ucrânia colocou a Turquia numa posição de certo modo privilegiada, uma vez que, depois da Guerra Fria, passou a manter boas relações com a Federação Russa, e Erdogan tem sabido aproveitar habilmente a sua situação, tentando fazer de intermediário entre o Ocidente e Putin. Mais sobre isto, adiante.

E agora a Suécia. É uma monarquia constitucional e democracia parlamentar que divide a Península da Escandinávia com a Noruega e a Finlândia. Chegou a ser um grande império agressivo, extinto durante as guerras napoleónicas. A última vez que se envolveu numa guerra foi em 1814, quando anexou a Noruega — anexação que terminou pacificamente em 1905. É o país que está há mais tempo em paz, mais ainda do que a Suíça.

Nos tempos modernos tem mantido uma política de estrita neutralidade, não participando na II Guerra Mundial nem tendo aderido às diversas instituições políticas modernas (com excepção das Nações Unidas, e organizações culturais e humanitárias). Em 1995, entrou para a União Europeia, onde mantém um papel discreto.

A Suécia, maioritariamente luterana, é conhecida sobretudo por duas vertentes: pratica uma igualdade social quase utópica e dá abrigo eficiente e desinteressado a dissidentes de outros países, de todas as cores. Quanto à igualdade social, basta dizer que a família real paga os mesmos impostos que todos os cidadãos e até juízes do Supremo Tribunal e políticos vão trabalhar usando os transportes públicos.

A transparência e a equidade são os apanágios do serviço público e os cidadãos orgulham-se de cumprir fielmente as leis, o que leva a um baixo nível de criminalidade. Na lista do “The Economist” dos países mais democráticos, está em terceiro lugar. Quanto ao acolhimento a refugiados políticos e económicos, tem programas de integração “suave” que incluem subsídios para os primeiros meses, aulas de sueco e um serviço de procura de emprego — todos eles muito eficientes, dizem-nos pessoas que passaram por eles.

Enfim, a Suécia só não é o paraíso porque o clima é agreste e os habitantes não cultivam o sentido de humor...

Finalmente, o que está a acontecer.

Com a invasão da Ucrânia, a Suécia e a Finlândia perceberam que a sua neutralidade não lhes dá nenhuma segurança em relação ao czar Putin. (Aliás, a Finlândia têm um histórico terrível com a Rússia czarista, que a invadiu e ocupou durante um ano, em 1908, e com a Rússia estalinista, que anexou violentamente 9% do seu território em 1939). Ser neutro não é nenhuma garantia de vida e o guarda-chuva da NATO é, afinal de contas, a melhor garantia contra o expansionismo imperial — ou colonial, como lhe chamam certos autores (Vale a pena ler a entrevista em que o filósofo francês Emmanuel Todd afirma que a III Guerra Mundial já começou).

Para Putin, a entrada dos dois países na NATO é exactamente o inverso dos seus objectivos, que seriam impedir o cerco da Federação Russa pelos inimigos que, segundo ele, a querem aniquilar. Para a NATO, que há anos os anda a tentar convencer, é a cereja no Putin, ahah.

A União Europeia e os Estados Unidos disseram logo que sim, mais vale tarde do que nunca, seria uma questão de semanas.

Esqueceram-se daquele que já foi o aliado estrategicamente mais importante da Guerra Fria, a Turquia, e sobretudo esqueceram-se que quem manda agora na Turquia é um autocrata zeloso dos seus poderes, vingativo e, sobretudo, especialista em aproveitar as situações que lhe podem dar alguma vantagem.

Acontece que há anos que a Suécia e a Finlândia dão abrigo aos curdos que fogem da persistente perseguição turca, entre eles muitos do PKK, o partido independentista do Kurdistão que é considerado um grupo terrorista por Ankara (e por Washington, que apoia os curdos mas não o PKK). Erdogan, que tem tentado fazer — sem sucesso — o papel de mediador entre Putin e o Ocidente, desta vez não está pelos ajustes. Para um país entrar para a NATO precisa de ter o voto favorável de todos os outros; todos os outros votam favoravelmente, mas Erdogan não vota. Vê aqui uma oportunidade única de acabar com as benesses que os nórdicos têm dado a um povo que ele considera dissidente, mal-agradecido por estar dentro da Turquia e rebelde.

As negociações arrastam-se. Os suecos, que têm o maior número de curdos, estão dispostos a fazer algumas concessões, mas não muitas. Os finlandeses, graças ao passivo que têm com os russos, mostram-se mais flexíveis. Para piorar as coisas, numa manifestação em Estocolmo, capital da Suécia, foi pendurada de cabeça para baixo uma efígie de Erdogan e, pecado dos pecados, queimaram um exemplar do Corão! 

Resultado: Erdogan agora diz que a Finlândia talvez possa entrar, mas a Suécia nem pensar.

O que ele pretende, certamente, é obter mais concessões. Os dois países já levantaram o embargo da venda de armas à Turquia, imposto quando da invasão da Síria, em 2019. Mas não chega. Erdogan vai ter eleições em Junho. Mesmo aldrabadas, podem trazer surpresas desagradáveis, se ele não se mostrar firme perante um eleitorado fortemente nacionalista e ressentido com o “desprezo” mostrado pela União Europeia aos seus desejos de inclusão.

Os suecos, tão igualitários, vão ter de negociar com o sultão de Ankara, um feroz negociante e pessoa que desconhece a palavra igualdade.

Enquanto isso, quem deve estar a gostar é Putin. O atraso da entrada dos nórdicos na NATO é uma pequena boa notícia, num ano que lhe tem corrido tão mal.