Na dimensão íntima, na vidinha da família e dos amigos, nunca gostamos de considerar a utilidade dos outros ou a nossa. Digamos que não é tão bonito, importa mais reivindicar afectos e outras fórmulas. A verdade é que existe um vampirismo a que podemos ser sujeitos na família e nas amizades em prol desse amor tão grande e que, de repente, se torna uma espécie de trabalho forçado. Faço isto porque me pedes; peço-te isto porque sei que farás melhor ou com maior facilidade do que eu.

Estes pequeno equívocos – com imensa importância, para não citar indevidamente Antonio Tabucchi – devem-se, em especial, à pobre e fraca comunicação entre familiares e amigos. Ficam sempre coisas por dizer; há sempre realidades por verbalizar. A frontalidade é relativa? Hoje, e sempre, terá sido assim. Afinal, fazemos cerimónia, não queremos discutir, é melhor calar, que importa agora ser totalmente transparente se isso só causará dissabores? E assim vamos vivendo, acumulando infelicidades junto das pessoas que mais queremos no mundo.

E vem isto a propósito de quê? Numa conversa com uma adolescente, depois de a ouvir lamentar-se sobre o mundo em geral, a sua vida em particular, percebo que não tem uma conversa séria e honesta com os pais, com quem vive, há pelo menos dois anos. Os pais desconhecem que tem uma namorada, a sua verdadeira sexualidade, ainda lhe falam em casar com um primo, conta ela com desdém. Os pais não sabem que ela fuma, pelo menos um maço por dia. Os pais não sabem que tem cadeiras acumuladas do primeiro e segundo ano, acreditam que concluirá a licenciatura este ano. Os pais não sabem que terão de pagar essas disciplinas que ficaram para trás. Os pobres pais, penso eu. E a adolescente – do alto dos seus 22 anos talvez fosse correcto dizer que é uma jovem adulta, mas o comportamento dela e a dependência financeira são de tal ordem que a palavra adolescente é que a vinga no meu pensamento – acrescenta, sem qualquer remorso ou sentimento de frustração, que os pais são enganados “porque querem”.

Conto até dez para não reagir de forma muito brusca, bem vistas as coisas não é minha filha, nem sequer é alguém com quem tenha uma relação intensa ou longa. Tendo a controlar as minhas palavras, mas não consigo deixar de ir em defesa desses pais que vi duas vezes na vida. A jovem responde-me que eles têm o que merecem, porque nunca se preocuparam verdadeiramente com ela, porque trabalham imenso, porque não querem grandes conversas, porque são espectadores passivos da sua existência. Pergunto-lhe: “Então, os teus pais são apenas úteis para as coisas básicas? Pagam a tua roupa, a faculdade, os teus cuidados médicos...” E ela diz: “Pois, são úteis”. E remata com isto: “Por enquanto”.

Tive uma vergonha imensa de estar a ter aquela conversa. Lembrei-me de uma frase de Agustina Bessa-Luís na qual que se garante que a ingratidão é o manifesto da juventude. Felizmente, o telemóvel da jovem tocou e ela sorriu-me e foi à sua vida. Eu já tinha pedido a conta e pago o café. Fui, também eu, muito útil.

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