Na hora em que faltam os abraços, as caras destapadas, os olhos nos olhos, deveria ser possível pôr a pandemia de lado. Não se pode, claro. E, por isso, o velório faz-se com este constrangimento aflitivo de tocar no ombro, na mão. E depois há aquela pessoa que temos mesmo de abraçar e pensamos, que se lixe, a dor é maior que o vírus, a dor precisa de consolo, tem de se partilhar com o corpo da outra pessoa, os braços ao redor, as mãos a proteger quem sofre.

Tenho ido a demasiados velórios e funerais. A morte surpreende-me a cada vez e não tenho vergonha da comoção que sempre me atinge; tão-pouco dos pensamentos que, à partida, se devem esconder. Podia ser a minha mãe, podia ser a minha melhor amiga, podia ser…

A morte ensina-nos a valorizar cada minuto, cada sorriso, cada chatice e contrariedade. É condição humana permanecer num limbo existencialista, tentar encaixar a finitude. Não queremos morrer. Também não queremos sofrer, mas a idade traz-nos a lucidez de saber que há qualquer coisa de inevitável no sofrimento, porque a traição do corpo é demasiado real.

A idade também nos traz o medo. E nada existe de mais absurdo do que temer o inevitável. Pode ser absurdo, mas é humano. A ideia da morte não conforta. É sempre o desconhecido.

No velório, o meu corpo contra o da minha amiga, da minha sobrinha do coração. O meu corpo a querer salvá-las, apesar de ser impossível. Perdemos o ano de 2020. Pelas coisas que não fizemos juntos; as palavras que não trocámos; as canções que não cantámos aos berros, enquanto dançávamos; os poemas que não ouvimos pela noite fora, garrafa de rum por perto. As gargalhadas. O orgulho de sermos quem somos quando estamos juntos. No velório pensamos nisto, dizemos isto, perdemos um ano de partilhas e agora estamos aqui. É urgente viver.

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