Nenhuma sondagem tinha detetado que o desinteresse dos eleitores teria tão grande expressão. No sistema eleitoral francês as eleições decorrem em duas voltas, com a primeira aberta a todos os candidatos e a segunda apenas para os melhor classificados.
As sondagens também falharam a antecipação do quadro de resultados da primeira volta destas eleições, neste domingo, 20 de junho. Estava sugerida uma maré de votos para a extrema direita (Rassemblement National, Reagrupamento Nacional, RN) de Marine Le Pen. Aconteceu o contrário: o RN caiu dos 28% que recebeu nas anteriores eleições para agora 19,8%. Ainda há para saber o que vai acontecer na conclusão desta eleição no próximo domingo, mas o cenário atual aponta probabilidade de o partido de Le Pen falhar o triunfo em qualquer das 13 regiões na França continental.
Há uma só região, Provence-Alpes-Côte d’Azur (PACA), na França do sudeste (é a vasta região em volta de Marselha), em que a extrema-direita RN está na frente (34,8%), embora com apenas um ponto percentual de avanço sobre o candidato da direita clássica (33,7%). É natural que, conforme a tradição francesa, no próximo domingo, os eleitores de esquerda votem na candidatura da direita para barrar a extrema-direita.
O quadro de resultados desta primeira volta das eleições regionais francesas mostra que a direita clássica, Les Républicains, ressurge uma dúzia de anos depois como força política mais votada (27%), seguida pelo RN de Le Pen (19,8%), pelo PS (17%), pelos Verdes (12,5%) e pelo LREM do presidente Macron (11%).
Resulta desta primeira volta a derrota pesada do partido presidencial formado por Macron, reduzido ao papel de figurante nas grandes disputas, e a frustração da extrema-direita Le Pen. Na prática, os partidos da velha política resistem ou ganham aos da nova política.
A abstenção elevada nesta primeira volta condiciona o essencial da análise aos resultados desta primeira volta. Seria de esperar mobilização forte da extrema-direita que parecia lançada para o melhor resultado de sempre. As sondagens previam que o partido de Le Pen ficasse à frente em seis das 13 regiões. Afinal, só é primeiro e à tangente na região PACA. No essencial, o RN recua. Os eleitores da extrema-direita ficaram em casa? Le Pen apareceu menos estridente nesta campanha, pareceu apostar na normalização da corrente política que encabeça, em estratégia focada nas presidenciais do ano que vem, a pretender mostrar que a vitória dela não põe em causa a democracia. Se a estratégia é essa, não funcionou.
A esquerda resiste melhor que o previsto e, em aliança com os Verdes, pode manter a presidência das cinco regiões que tem liderado, quase todas na fachada atlântica francesa.
Estas eleições regionais têm sido comentadas como o arranque das presidenciais de abril do ano que vem. Até aqui, essa corrida presidencial aparecia reduzida a um duelo no topo entre Macron e Le Pen. Ambos falharam neste primeiro arranque. Em contrapartida, dispara pujante Xavier Bertrand, o líder da direita clássica (Les Républicains), que se liberta do que aparecia como a tenaz Macron/Le Pen.
Xavier Bertrand teve nesta primeira volta das regionais um trampolim para a eleição presidencial do ano que vem, para a qual Macron parece em grande dificuldade e Le Pen estagnada.
É improvável que alguma candidatura da aliança entre Socialistas e Verdes possa aparecer com aspiração ganhadora. Mas a direita clássica, encabeçada por Bertrand passa a contar.
O problema a cuidar é a abstenção. Dois de cada três franceses passaram ao lado destas eleições regionais. A tradição francesa é de afluência de 70 a 80% nas presidenciais e legislativas, e de 60 a 70% nas regionais. Desta vez foi de míseros 36%.
O que é que pôs os eleitores indiferentes a esta eleição?
Há factos que será útil considerar: no decurso das duas semanas de campanha houve um descontente, ex-ativista dos coletes amarelos, que deu uma bofetada na cara do presidente Macron. No mesmo dia, Mélenchon, líder da esquerda mais à esquerda, foi enfarinhado numa ação de campanha. Há notícia de vários outros incidentes. Está a abrir-se uma época, iniciada com o movimento dos coletes amarelos, de agreste falta de respeito pelos dirigentes políticos?
São os jovens quem mais desertou nestas eleições. Será que o problema passa, como alguns eleitores têm dito, por a oferta política não dar resposta às aspirações dos cidadãos?
Estarão a afastar-se do compromisso cívico através do voto perante a sensação de que o voto não leva a alguma satisfação nas condições de vida das pessoas? Um eleitor em Lyon comentava no domingo que a fase atual é de “fake démocratie”.
Há uma atenuante: a arquitetura regional francesa desenha 13 regiões que parecem muito politico-burocráticas e terem pouco a ver com o dia a dia e o coletivo das pessoas. Por isso, são eleições que não seduzem.
Mesmo com as atenuantes que até passam pelo pós-Covid (a pandemia causou 110 mil mortos e muita paralisação em França), é evidente que há um problema de regressão na participação eleitoral dos cidadãos. A zanga é tal que mesmo um partido nascido do protesto, como é o de Le Pen, não escapa.
Por toda esta semana vão suceder-se negociações para alianças entre blocos. Há que esperar para saber o que vai acontecer nas decisões eleitorais finais no próximo domingo.
A principal realidade destas eleições está a ser o desapego dos eleitores. Outra evidência: para as presidenciais do ano que vem Macron já não tem apenas Le Pen como rival, passa a ter um adversário da direita clássica, a que foi de Chirac, Giscard, Sarkozy e que agora é de Xavier Bertrand, à cabeça de um centrismo amplo, moderado, liberal e europeísta. As coisas complicam-se para Macron, que se move nesse mesmo espaço. Também para Le Pen que afinal talvez não tenha receita política eficaz.
Vale seguir a evolução política em França que muitas vezes tem sido replicada em Portugal.
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