Gosto de livrarias. Aliás: gosto muito de livrarias. Mas confesso este pecado: de vez em quando, lá mando vir um ou dois ou três livros lá de longe. E a livraria, cujo nome não vale a pena pronunciar, manda-me os livros e eles chegam aqui.
Com o tempo, tal como há prazer em passar os dedos pelas lombadas dos livros que nunca hei-de comprar numa boa livraria, aprendemos que também há prazer em receber esses pacotes castanhos com livros dentro. Como se fosse Natal quando um leitor quiser.
Bem, o certo é que a tal livraria inglesa de nome brasileiro, quando manda uma encomenda, deixa-nos bisbilhotar por onde andam a passear os nossos livros. Vamos lá à página e vemos a viagem quase em directo. E eu quero ver. E vou ver. E lá vou esperando, a afagar as mãos, pelos meus livrinhos.
Ora, esta semana, encomendei uns livros na página espanhola da tal livraria. A minha lógica foi esta: Espanha está mais perto, os livros chegam mais rápido — e têm menos alfândegas pelo meio do que se comprássemos na loja inglesa.
Fiz a encomenda e, minutos depois, fui espreitar onde estavam os meus livros. Pois, logo me apareceu a primeira paragem da viagem: França.
França? Então, mas não era Espanha?… Enfim, tudo bem, eles é que sabem.
A terra donde saíram os livros chama-se Gidy. Hum, cheira a terra com muita flor e um rio. Muito bem, comece a viagem dos meus livrinhos. Vá, venham por aí abaixo até mim, até Lisboa…
Pois os livros em vez de virem para sul, vão para norte e chegam, horas depois, a St Jean de la Ruelle. O que é isto? O que se passa? Quem anda a passear com o meu livro pela França? Portugal é para baixo, ó ignaro condutor de camiões transportadores de bens preciosos.
Pois, em poucas horas, os livros passam de St Jean de la Ruelle para Chilly Mazarin, ainda mais a norte. Não só estou a ver os livros a afastarem-se em direcção ao Mar do Norte, como ainda por cima estou a ficar com fome de estrada.
Porra: eu é que queria estar em Chilly Mazarin ou lá o que é! É verdade: gostava ainda mais de estar em Nice ou na Córsega, mas não se pode ter tudo. Aliás, nem sequer se pode ter Chilly Mazarin, quanto mais.
Fui dormir. Na manhã seguinte, acordo, ponho os óculos, pego no telemóvel, vejo onde estão os livros ainda estremunhado.
Os livros estão em Benavente! Viva! Lisboa à vista!
Só que aparece “Benavente, ES”. ES? Espanha? Mas o que é isto? Fomos invadidos?
Percebo então que há um Benavente perto de Zamora. Raios. Eu queria os meus livros agora. Prometo nunca mais fazer isto e, a partir de agora, comprar todos os meus livrinhos em livrarias. Isto de adiar a satisfação é importante para a vida, mas muito aborrecido.
E, ainda por cima, o raio dos livros ficam em Benavente um dia inteiro! O que raio há em Zamora para ver? Nada! Venham lá embora, se faz favor.
E, ao fim da tarde, eles saem lá de cima e vêm por aí abaixo. E eu contente, já a sentir a vibração daquelas páginas.
Por fim, ao som de Wagner, vejo o camião a dobrar a esquina. Sorrio. O camião passa por mim sem parar. Fico triste em câmara lenta. Até que os meus livros travam. O homem enganara-se. Marcha-atrás. Estacionamento perfeito. E lá aparece o senhor de chapéu na cabeça e caneta na mão, com o meu embrulho castanho.
Assino aquilo, digo um obrigado a correr e destruo com prazer o cartão. Aliviado, passo os dedos pelos livros vadios. Fecho os olhos e penso: a felicidade, às vezes, está no cheiro dum livro novo.
Somos bichos muito estranhos.
Agora, desculpem, mas vou ali ler e já volto.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
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