Está armado um burburinho por causa do despacho que Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação, mandou publicar ontem, e que António Costa, primeiro-ministro, mandou hoje revogar. Não vou aqui esgrimir argumentos contra ou a favor de um ou de outro, não interessa, para o caso, quem se excedeu. O que importa é quem foi ultrapassado e, para não variar, os ultrapassados fomos todos nós, um país inteiro.

A discussão sobre o novo aeroporto e a sua localização não começou hoje e alguém devia pôr nisto um ponto final. Para colocar a coisa em perspectiva, quando o novo aeroporto começou a ser discutido ainda Pedro Nuno Santos não era nascido. E é isto - independentemente da vergonha do resto -, que é escandaloso: passaram quase 60 anos e ninguém decidiu nada.

Deixo aqui uma breve cronologia dos factos:

  • Em 1965 um grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério das Obras apresenta o Projecto do Plano da Região de Lisboa, enviado à Câmara Corporativa com pedido de parecer. Nesse Plano, pela primeira vez, a área de Rio Frio é indicada como a mais adequada para a construção de um grande aeroporto internacional;
  • Em 1969, na 4ª sessão do Conselho Aeronáutico, a área de Rio Frio é escolhida como a localização ideal para o aeroporto internacional de Lisboa e passa à fase de anteprojecto. O processo é remetido ao Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes para acompanhamento e são iniciadas negociações para a expropriação dos terrenos. É criado o Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa (GNAL);
  • Em 1971 é emitida legislação que decreta a aplicação de medidas preventivas à totalidade da área explorada pela Sociedade Agrícola de Rio Frio para condicionar qualquer decisão de investimento naquela área;
  • Em 1973 é declarada a utilidade pública dos terrenos e sua expropriação urgente;
  • Em 1975 são suspensos todos os estudos sobre o Novo Aeroporto de Lisboa (mas em 1976 é decretado regime de servidão aeronáutica, que vigora até 1985);
  • Em 1980, Viana Baptista, ministro das Obras Públicas, reabre o processo para avaliar a sua validade;

Respire fundo, ainda nem sequer vamos a meio...

  • Em 1982 estudos são reapreciados e acrescentadas às opções já analisadas sete outras: Santa Cruz, Ota, Azambuja, Alverca, Granja, Tires e Marateca. A empresa norte-americana Tippets, Abbett, McCarthy and Stratton (TAMS) emite um parecer a sugerir modificações mínimas e a custo reduzido para permitir ao aeroporto da Portela continuar a operar até 1995 e localizar o novo aeroporto na zona de Rio Frio (com a necessidade de construir nova Ponte sobre o Tejo e desactivar a Base do Montijo e o Campo de Tiro de Alcochete);
  • Em 1985/86, o ministro dos Transportes, Oliveira Martins, promove estudo de adaptação da Base Aérea da Ota para servir como futuro aeroporto de Lisboa. Alega que a alternativa Rio Frio implica custos elevados dada a necessidade de se construir uma nova ponte sobre o Tejo;
  • Em 1987 o governo solicita reapreciação do assunto. Estudos da ANA consideram preferencial a localidade da Ota. Com Ferreira do Amaral como ministro das Obras Públicas voltam a ser promovidos estudos comparativos das soluções Ota e Rio Frio;
  • Em 1994 são apresentadas conclusões sem evidenciar localização claramente preferencial. Os estudos realizados não ponderam as exigências decorrentes dos impactos ambientais sobre a Reserva Natural do Estuário do Tejo;
  • É durante o governo de António Guterres, com João Cravinho no Ministério do Equipamento e Elisa Ferreira no Ministério do Ambiente, que a opção Ota é assumida. Em 1997 é criado um grupo de trabalho e a ADP – Aeroports de Paris é contratada como consultora/coordenadora dos vários estudos entregues a especialistas;
  • Em 1998 é constituída a NAER - Novo Aeroporto, SA, a quem compete proceder aos estudos necessários à preparação e execução das decisões referentes ao planeamento e lançamento da construção do novo aeroporto. Nesse ano é nomeada uma Comissão de Avaliação de Impacte Ambiental (CAIA) do novo aeroporto;
  • Em 1999, a CAIA submete à consideração da ministra do Ambiente, Elisa Ferreira, as conclusões e recomendações finais da Comissão, e identifica Ota como a alternativa menos desfavorável, com necessidade de se realizarem estudos adicionais após a decisão. Ministra envia processo ao ministro do Equipamento, que acolhe proposta conclusiva da escolha da localização. Na sequência da decisão, ADF emite parecer com alternativas Ota e Rio Frio e coloca Rio Frio em primeiro lugar para maioria dos critérios, excepto os ambientais. Ministério do Ambiente considera como única recomendação viável a Ota;

Se aguentou até aqui, já é um herói. Mas ainda falta.

  • Durão Barroso chega ao poder. Empreendimento é congelado e dada luz verde às obras de ampliação do aeroporto da Portela;
  • É a vez de José Sócrates, que mantém opção do aeroporto na Ota no seu programa de governo. Em 2005 o ministro das Obras Públicas, Mário Lino, confirma construção na Ota (um dos motivos apresentado era a melhor articulação com o traçado do TGV, entretanto alterado) e apresenta projecto do empreendimento perante 700 convidados;
  • Em 2006, a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Transporte Ferroviário realiza três sessões para debater o impacto do aeroporto na OTA. Cresce o movimento a favor da localização do aeroporto na margem sul do Tejo. Há quem defenda a utilização do Campo de Tiro de Alcochete. Por decisão do governo, a maior plataforma logística do País será implantada na zona do Poceirão. Poceirão e Faias, a 45 km de Lisboa e a poucos quilómetros de Rio Frio passa a ser considerada localização possível;
  • Em 2010 um relatório da auditoria do Tribunal de Contas mostra que o encargo público com o aeroporto atingia 35,4 milhões de euros, mais 1,3 milhões do que o previsto em 2006, e acrescenta que seriam necessários mais 39 milhões para operacionalizar o aeroporto e cobrir défices de exploração da Empresa de Desenvolvimento do Aeroporto de Beja (EDAB) até 2015;
  • Em 2019, governo e ANA assinam acordo que prevê transformação da base aérea n.º 6, no Montijo, e expansão do aeroporto Humberto Delgado, a opção Portela + 1. Objectivo é que Montijo entre ao serviço em 2022, num investimento de 1,15 mil milhões de euros;

Já tem cabelos brancos? É normal.

  • Dia 30 de Junho de 2022. Passaram 57 anos e nem Rio Frio, nem Ota, nem Alcochete, nem Poceirão, nem Beja, nem Montijo, nem nada.

Sim, esta é mais uma trapalhada do governo, como já foi admitido pelos seus protagonistas, mas o pior é mesmo saber que o tema novo aeroporto continua a ser assunto e motivo de embrulhadas sucessivas tantos Pedros Nunos Santos e tantos Antónios Costas depois. Tudo na mesma como a lesma, excepto o tempo e dinheiro até agora empreendidos, mas o que é isso para um país rico como Portugal?

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