Abusar na exploração do brinde que foi a chegada a Angola da urna com o corpo do ex-presidente a apenas cinco dias da ida às urnas daria à vigorosa oposição encabeçada pela UNITA argumentos para inflamar ainda mais, em cima do voto, a contestação às práticas do partido que é governo.
Talvez o MPLA tenha percebido que não se vê em Luanda alguma maré humana para celebrar o homem que foi presidente por 38 anos. Apesar do estilo hagiográfico na cobertura pela televisão oficial angolana, notou-se a falta de multidão nas ruas percorridas pelo cortejo fúnebre entre o aeroporto e a mansão da família no bairro de elite de Miramar.
Os angolanos estão mobilizados para conquistar através do voto o que é o tempo imediato e o futuro próximo. Sabem que não é ocasião para se agarrarem ao passado que magoa e até revolta os muitos que sofrem por o país ser tão desigual, ter tanta cleptocracia e assim deixar a maioria na pobreza.
As gerações mais jovens querem acreditar que é possível que Angola seja um país com vida melhor, com menos desemprego, menos desigualdade. Querem que Angola deixe de servir os interesses do homem que está na presidência e dos interesses privados em volta dele. Querem que a democracia fique mais robusta, portanto um país mais inclusivo e em que haja toda a liberdade - também para a contestação até aqui frequentemente reprimida.
O protesto em Angola tem vozes que estão há muito a ampliá-lo. O jornalista e ativista Rafael Marques tem duas décadas de constante denúncia dos abusos e das contínuas violações da liberdade e dos direitos humanos por parte do regime do MPLA. A plataforma Maka Angola, criada por Rafael Marques, tem centenas de milhar de utilizadores.
A Club-K e a Central Angola 7311 são outras plataformas que incomodam o governo do MPLA porque desafiam a propaganda nos meios comandados pelo regime.
Mas a denúncia mais mediática e eficaz dos abusos do “sistema MPLA” tem origem no rapper Luaty Beirão: ele usou a música para sensibilizar as novas gerações para a tomada de consciência para os problemas do país. Em 2012, Luaty colocou o então presidente José Eduardo dos Santos no alvo da combativa canção Kamikaze angolano, como versos que denunciam “Culpado da miséria no país não é só um/ mas o principal, não é segredo, chama-se Zedu./ És um pedaço de ferro, mano, frio e inanimado”. Três anos depois, Luaty foi um dos 15 detidos porque, segundo uma nota dos Serviços de Investigação Criminal do Ministério do Interior, transmitida pela Televisão Pública de Angola (TPA) e a Rádio Nacional de Angola (RNA), “se preparavam para realizar atos tendentes a alterar a ordem e segurança pública do país”. Quais eram esses atos que levaram às detenções? Liam e partilhavam livros políticos que “incitavam ao protesto”. Presos, foram levados a julgamento e no tribunal condenados por “estarem a preparar um atentado contra o presidente”. Luaty foi condenado a cinco anos e meio, mas a greve da fome que ele cumpriu durante 33 dias veio a convertê-lo em símbolo principal da rebeldia contra o regime e da ânsia da classe média angolana de sociedade mais livre e mais justa. O caso Luaty teve repercussão internacional e o regime foi obrigado a ceder e a antecipar a libertação dos condenados.
A UNITA agarrou-se a esta onda de contestação que está a levantar muito das novas gerações urbanas e a cúpula do partido soube desenvolver a transição geracional. Desde 2019, o líder é Adalberto da Costa Júnior, político com carisma e oratória viva, e mais de 20 anos de vida na Europa: formou-se em Engenharia no Porto, em Ética Pública no Vaticano e foi representante da UNITA em Portugal, em Itália e na Santa Sé. Adalberto Costa Júnior é o terceiro líder da UNITA (depois de Savimbi e de Samakuva) e nestes três anos soube desmontar preconceitos raciais e tribais que ficaram a marcar a UNITA no tempo de Savimbi. Apresenta-se nestas eleições a encabeçar a coligação da oposição – Frente Patriótica Unida – que inclui, para além da UNITA, o BNloco Democrático e o movimento PRA-JA. Apresenta-se como “a esperança de novo começo e novo rumo”, frente à “evolução na continuidade” prometida pelo MPLA de João Lourenço.
As eleições deste 24 de agosto – as quintas em 47 anos de existência da República Popular de Angola – são legislativas, mas também valem como presidenciais. A revisão constitucional angolana de 2010 extinguiu a votação para eleição presidencial e definiu que o líder do partido com mais lugares no parlamento se torna automaticamente presidente da República.
É assim que as eleições desta quarta-feira vão decidir se Angola escolhe a continuidade com João Lourenço (MPLA) ou a mudança com Adalberto da Costa Júnior (UNITA).
Nas anteriores eleições, há cinco anos, o MPLA alcançou 150 dos 220 deputados e a UNITA apenas 51.
Não há medição rigorosa das intenções de voto dos angolanos antes das eleições desta quarta-feira.
É previsível que a atmosfera muito competitiva que envolve a campanha leve a alta participação.
Comentadores que conhecem bem a realidade social angolana notam que há crescendo do apoio à UNITA, sobretudo em Luanda e noutras das principais cidades.
A perceção acrescenta que o voto jovem está mais para o lado da UNITA e o voto veterano mais para o MPLA.
Vai ser preciso esperar pelo apuramento de resultados eleitorais num processo que se deseja transparente, mas que se teme que venha a ter muitas zonas de sombra e contestações. É preciso afastar o fantasma de 1992, quando a UNITA decidiu contestar os resultados que deram vitória ao MPLA por 200 mil votos, e a tensão levou ao prolongamento da guerra civil por mais 10 anos e mais de um milhão de mortes.
Angola é hoje o país de 33 milhões de pessoas. O desemprego está acima de 35%. A pobreza extrema atinge mais de 14 milhões de pessoas – a maior parte não consegue alimentar-se com uma refeição básica em cada dia.
O Estado é o maior empregador neste país onde tudo está centralizado em Luanda – cidade de 8 milhões de pessoas – e o tecido empresarial é ínfimo.
José Eduardo dos Santos, nos 38 anos de presidência, teve o mérito de consolidar a paz mas foi inimigo de qualquer tipo de dissidência e amigo da cleptocracia praticada por quem se movia à volta dele. Isabel, a primogénita entre os 10 filhos do ex-presidente, juntou uma riqueza superior a 2.000 milhões de dólares e negócios em áreas como o petróleo (chegou a ser diretora executiva da Sonangol, a petrolífera do Estado), os diamantes, a banca e o cimento. O filho José Filomeno dos Santos foi nomeado em 2013 para dirigir, por decisão do pai-presidente, o Fundo Soberano de Angola; veio a ser condenado a cinco anos de prisão por peculato e abuso de confiança; outra filha, Welwitschia, conhecida como Tchizé, escolheu usar o dinheiro facilitado pelo pai para se dedicar às telecomunicações e aos media.
Em 2017, José Eduardo dos Santos percebeu que estava obrigado a retirar-se. Cedeu a presidência ao seu ministro da Defesa, João Lourenço, que suscitou esperanças democráticas com medidas que decidiu logo nas primeiras semanas. Escolheu como símbolo da mudança o desmantelamento do império da família do ex-presidente. Passou a ser foco do ódio nestas semanas muito proclamado em público por Tchizé, uma das filhas do antecessor. Mas, com o passar do tempo, cresceram acusações ao atual presidente Lourenço de estar a substituir o anterior clã cleptocrata por um outro.
João Lourenço chega a estas eleições desgastado porque a esperança que prometeu há cinco anos não se concretizou.
Adalberto da Costa Júnior tem a vantagem de ser uma voz nova que explora o ânimo para a esperança.
Parece muito provável que a UNITA vá ter robusto crescimento nestas eleições. Há muita gente que quer mudanças, o que implica descida do MPLA.
A UNITA vai ganhar estas eleições? Não será o cenário mais provável, mas não é de excluir. O MPLA pode ganhar por poucochinho? Talvez.
Problema sério: nem UNITA nem MPLA parecem preparados para aceitar perder.
Esperança: que a sensatez acabe por prevalecer e Angola se torne um país menos desigual.
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