O documento de suporte à candidatura, cujo impulso cabe ao Estado português, já foi endereçado ao presidente da Assembleia-Geral da ONU, o diplomata turco Volkan Bozkir, e à presidência do Conselho de Segurança, exercida este mês pelo Reino Unido.
O mandato de António Guterres teve início a 1 de Janeiro de 2017, terminando a 31 de Dezembro próximo.
A carreira deste nosso compatriota, ao contrário de outros que atingiram igualmente cargos de relevo nos foros internacionais, é bastante cristalina, não se lhe conhecendo sombras, para lá das naturais manobras da política.
Formado em engenharia electrotécnica no IST, em 1971, fez parte da JUC, na altura dirigida pelo Padre Vítor Melícias (uma figura que só nós, portugueses, podemos avaliar devidamente...). Uma fonte, com conhecimento do ambiente da altura, contou-me que Melícias terá aconselhado Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa (que também militava na JUC) a seguirem carreiras diferentes, porque sendo ambos brilhantes, só teriam a perder em serem concorrentes... Verdade ou não, é um pormenor curioso da pequena História.
Em 1976, no rescaldo da Revolução, Guterres, que era assistente na faculdade, escolheu o PS e, depois duma rápida carreira ascendente que incluiu várias legislaturas como deputado, em 1992 tornou-se Secretário Geral do partido, sucedendo a Jorge Sampaio. Os socialistas venceram as legislativas de 1995 e 1999 e Guterres, alavancado pelos milhões que nesse período vinham do famoso Fundo de Coesão da União Europeia, exerceu dois mandatos cheios de luxos nunca vistos nesta terra, que culminaram simbolicamente na Exposição Mundial de 1998.
Todavia, em 2001, na sequência dos maus resultados obtidos pelo partido nas eleições autárquicas, demitiu-se, “para evitar que o país caia num pântano político”, expressão que ficou famosa, embora fosse incompreensível; já que as autárquicas não determinam quem governa o país. Aliás, quando um partido tem maus resultados nas autárquicas, a primeira coisa que alega é que não têm reflexo da condução da política nacional. Na altura, o que se dizia era que ele estava farto de governar, ou que tinha algo de sinistro a esconder – invejas ou mau olhado, que a História nunca confirmou.
Como acontece com muitos políticos que se retiram da arena, arranjou um lugar simpático, como consultor na Administração da Caixa Geral de Depósitos.
Os seus contactos internacionais – foi Presidente da Internacional Socialista entre 1995 e 2000 – e talvez o interesse do Governo PSD da altura (Durão Barroso) de o manter à distância, levaram a que Portugal o apresentasse como candidato a Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.
Os cargos de topo da ONU são propostos pelos seus membros, isto é, os países, e obedecem a representatividades, negociações e equilíbrios políticos que escapam ao cidadão comum. Constata-se uma tendência (que também se verifica na União Europeia e em outros organismos internacionais) em escolher candidatos de países menos importantes, o que dá uma aparência simbólica de igualdade entre todos e permite aos países mais fortes manobrarem melhor os nomeados, nos bastidores.
Em 2016, o Conselho de Segurança elegeu-o por unanimidade (sem nenhum veto) como Secretário Geral. Depois da confirmação por maioria simples na Assembleia Geral, começou a exercer o cargo em 1 de Janeiro de 2017.
Com uma atitude cordial e quase humilde, mas bastante assertiva, Guterres tem um perfil perfeito para o cargo, que tem enorme prestígio (e, por arrasto, prestigia o seu país de origem), sem ter poder algum. Sendo uma assembleia de todas as nações, um autêntico saco de gatos, a ONU é mais uma montra de agravos e vaidades do que um órgão com poderes reais. Tem a função prática e necessária de colocar todos os países numa sala (agora virtual, em parte) a discutir segundo os interesses de cada um. Os resultados dependem, evidentemente, da notória desigualdade entre as partes. O Conselho de Segurança, que tem como membros permanentes os vencedores da II Guerra Mundial mais a China, não reflecte a situação internacional presente – o mais evidente exemplo disto, é a ausência da Alemanha. O Conselho é composto por 15 países, sendo dez não permanentes (com um mandato de dois anos), e nesta categoria entram membros sem qualquer peso internacional, exactamente para manter a ficção igualitária das nações. Os 10 assentos não-permanentes são distribuídos regionalmente da seguinte forma: cinco para os Grupos dos Estados Africanos e Asiáticos; um para o Grupo dos Estados da Europa de Leste; dois para o Grupo da América Latina e Estados das Caraíbas; e dois para o Grupo dos Estados da Europa Ocidental e outros Estados.
Além das representações nacionais, as Nações Unidas têm um extenso corpo de funcionários, que actuam seguindo várias vertentes de interesses – pessoais, nacionais, ideológicos e dos vários blocos, formais ou informais. São carreiras de funcionário público internacional, e imagina-se a alta política que leva às decisões dos diversos secretariados, comissões e departamentos.
Chamo a atenção para esta complexidade para melhor avaliar as qualidades que tem de ter um homem como Guterres para navegar nesta cacofonia universal. Com o seu ar descontraído e ao mesmo tempo preocupado com os incontáveis problemas insolúveis que a ONU aborda, o cargo exige uma aparente autoridade juntamente com uma capacidade excepcional de engolir sapos sem perder a face.
Lendo a imprensa internacional, percebe-se que Guterres tem conseguido navegar este mar alto a contento de toda a gente. Como salienta o especialista Richard Gowan, nenhum outro candidato se apresentou até agora.
Em Portugal diz-se, com tom crítico, que ele “se soube desenrascar”. Mas fala a inveja, essa característica tão portuguesa.
Somando votos e interesses, Guterres é o candidato ideal. Outros haveria, mas neste momento nenhum se destaca. Como ele famosamente disse, “é só fazer as contas.”
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