(1) Vacinas e (2) pessimismo

Nós andamos obcecados pela margem, pela excepção, por aquilo que não corre tão bem e, às vezes, ficamos cegos perante alguns milagres bem pouco sobrenaturais.

Ora, reparem: em muitas sociedades de hoje em dia, uma larguíssima maioria da população aceita que as suas crianças sejam picadas de forma dolorosa para imunizá-las contra doenças graves. A picada comporta alguns riscos individuais, mas todos sabemos que, se todos aceitarmos essa pequena dor, ficaremos todos melhor e várias doenças tenderão a desaparecer. Os resultados notam-se nas estatísticas. A dor sente-se em cada braço.

Serei só eu, ou isto é espantoso? É espantoso que, apesar de tudo, a vacinação seja algo tão pacífico? É que é tão fácil não perceber bem o que se passa, é tão fácil cair em teorias da conspiração sobre o que “eles” querem pôr no corpo das nossas crianças, é tão fácil ter medo das substâncias que estão nas vacinas, é tão fácil acreditar nos que gritam contra esta intromissão dolorosa nas nossas vidas.

Ora, na verdade, temos 95% da população vacinada e convencida. Para alguns catastrofistas, isso não interessa. Os 5% que faltam são a prova de que vivemos em tempos de perfídia e ignorância.

Esse tipo de pessimismo preguiçoso demonstra pouco respeito por todos os que vacinam os filhos — e também, atrevo-me a dizer, por aqueles poucos que não o fazem e que, como gente que erra como todos erramos noutras coisas, merecem que não desistamos de discutir com eles e explicar por que razão a vacinação é algo que melhora a vida de todos e protege as nossas crianças, apesar do choro. Estas pessoas não são prova da cada vez maior perfídia do mundo. São apenas pessoas que estão enganadas num assunto em que o erro é especialmente perigoso.

Enfim, talvez toda esta polémica sirva de vacina mental: depois desta tempestade, deve ser bem mais difícil ser antivacinas em Portugal. E ainda bem!

(3) Morte e (4) crueldade

Um pai ou uma mãe que recusa a vacinação está enganado, sim. Errou — e pode haver consequências mortais que devemos combater, explicando, informando, discutindo.

Mas a diabolização já é outra coisa. Reparem: há muita gente que abusa dos antibióticos e esse abuso tem consequências catastróficas na criação de resistências nas bactérias e no aumento das mortes por infecção. Devemos insultar todos os que tomam antibióticos a mais? Não me parece que seja o mais correcto (a situação seja, de facto, muito preocupante mas o insulto não leva a lado nenhum).

O que está mesmo muito errado é insultar os pais que perderam uma filha de 17 anos. Neste momento, as suas opiniões sobre as vacinas interessam pouco. Deixem-nos em paz.

E, agora, confesso: mesmo eu, que não ando por aí a achar que nasci no pior dos tempos, fico triste quando leio alguns defensores de boas causas a insultar de forma tão irracional e desprezível pais que perderam uma filha.

Algumas destas pessoas parecem estar convencidas que fazem parte duma minoria muito pequenina de pessoas bem-informadas — e que o resto do mundo só merece desprezo. Oiçam: nisto das vacinas, estão certos. Mas estão errados noutras coisas. Todos nós, que somos humanos, vivemos no erro e com o erro nascemos e morremos. Quando alguém passa pelo horror de perder um filho, a frase «Eu bem te avisei!» é cruel e mesquinha. E só contribui para encerrar num mundo ainda mais isolado e perigoso aqueles que recusam os factos nesta questão tão importante.

(5) Ciência e (6) confusões

Mas, pronto, se todos estamos sujeitos ao erro, bem podemos combatê-lo. Estas discussões sobre vacinas trouxeram à superfície muita ignorância sobre a ciência e muita confusão mental. E, como sabemos, a confusão mental, nestas questões, é perigosa.

Muitos dizem que não confiam assim tanto na ciência porque os cientistas não sabem explicar tudo (claro que não sabem! se soubessem, ficavam sem trabalho). Algumas pessoas andam convencidas que os cientistas estão no bolso das grandes indústrias (muitas são as mesmas pessoas que, depois, correm a enfiar-se no bolso das indústrias que vendem água a preço de medicamento). Oiço também quem diga que “os cientistas são arrogantes” como se isso tivesse algum impacto na verdade ou mentira do que nos diz a ciência. Alguns cientistas são, de facto, arrogantes — tal com também há carteiros com o seu quê de antipatia. Mas há gente que não percebe nada desta questão ou daquela e que é tão ou mais arrogante como o mais premiado e informado dos cientistas. Arrogância por arrogância, prefiro aquela que está mais bem informada.

*

Se alguém achar que fui um pouco incoerente nas opiniões que expressei acima, repare que falo de coisas diferentes: defendo o respeito por todos, independentemente das opiniões que tenham, por mais erradas que estejam. Defendo ainda que as opiniões não são todas iguais: o erro existe! Sim, há pessoas que estão enganadas — e uma delas posso ser eu.

(7) Livros

Não é fácil resistir à tentação das certezas absolutas — e ainda mais difícil é resistir a essa tentação sem cair no erro de pensar que tudo vale. Para percorrer esta corda bamba, o melhor é mesmo ler. Ainda por cima, hoje é o Dia do Livro... Aqui ficam três sugestões:

  • Um livro de Julian Barnes, chamado Arthur & George — podemos relativizar o que quisermos, mas no que toca ao crime, a culpa não deve ser uma questão de opinião. O livro também nos apresenta Arthur Conan Doyle — criador do mais racional dos detectives que, por outro lado, acreditava em fadas e em fantasmas. As nossas cabeças são complicadas.
  • Um livro de Ian McEwan, chamado Enduring Love (em português, O Fardo do Amor). Pode não parecer, mas é sobre ciência e também sobre como vivemos em mundos separados mesmo dentro da mesma casa. Um romance muito melhor do que o título, garanto-vos.
  • O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, de Jorge Buesco. Um livro leve e muito interessante, que nos dá algumas ideias sobre o que é a ciência e para que serve.

*

Querem agora uma história curiosa sobre como a verdade é mais complicada do que parece? O dia 23 de Abril é o Dia do Livro por várias razões, mas uma delas é esta: foi o dia em que, no ano de 1616, morreram Shakespeare e Cervantes. Sim, os dois monstros da literatura mundial morreram no mesmíssimo dia!

Só que não: os dois países tinham calendários diferentes e, embora a data fosse a mesma, morreram com duas semanas de diferença. A coincidência continua a ser espantosa — ou talvez nem por isso se tivermos em conta que Cervantes, na verdade, morreu no dia 22 de Abril, mas o óbito só foi registado no dia seguinte.

Interessa? Pouco: interessam mais os livros. Feliz Dia do Livro!

Marco Neves é autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa.