1. Este mês de Maio faz dez anos que parti para uma viagem no Afeganistão. De Norte para Sul, de Leste para Oeste, todos os dias explodia algo, carros, bombas suicidas, barricadas, prisões. Viajar por terra era uma odisseia, estradas de pó, de pedra, minadas, com talibans pelo meio, senhores da guerra controlando regiões inteiras, tropas estrangeiras guerreando os taliban. Tive muita sorte a cada dia, trinta dias, até ao fim.

Era (não apenas, mas também) uma questão de sorte, não estar no lugar errado à hora errada. Muita sorte por não me ter acontecido nada, muita sorte por ter conhecido uma quantidade incrível de gente que ajudou, decisivamente, a que nada me acontecesse. Uma dessas pessoas, uma das muitas mulheres extraordinárias que conheci, chama-se Rangina Hamidi. Nunca mais a vi, porque nunca mais voltei ao Afeganistão, mas calhou há poucos meses voltar a escrever-me com ela. E esta semana pensei nela de novo, como em tantas outras pessoas lá, quando por breves momentos o Afeganistão ocupou as manchetes, com dois ataques suicidas de seguida em Cabul.

Desde que lá estive, incontáveis ataques devastaram o Afeganistão, milhares e milhares de pessoas foram mortas. Mas não é todos os dias que um bombista suicida se disfarça de repórter, com cartão de imprensa e câmara, para se fazer explodir no meio dos repórteres que foram cobrir um primeiro ataque suicida. Foi essa dupla perversidade que o ISIS fez acontecer segunda-feira, na hora de ponta matinal do centro de Cabul. Um primeiro ataque para matar tanto quanto possível. Um segundo ataque para matar especificamente os que foram registar o primeiro, aqueles que ao longo destes anos não vão e vêm, como os repórteres estrangeiros, como eu fui, mas são jornalistas e fotógrafos afegãos, com famílias afegãs, arriscando a vida todos os dias, durante décadas, para registar o horror, cada vez pior, nesse país que é o deles. Um dos mais bravos e belos países, com alguma da gente mais brava e bela deste planeta.

2. Um dos fotógrafos que morreu na segunda-feira foi o veterano Shah Marai. Shah começou por ser motorista da AFP, a agência francesa de notícias. As grandes agências (AP, AFP, Reuters) são muitas vezes os únicos orgãos internacionais num lugar. E nos tempos mais dramáticos, em que poucos ou nenhuns forasteiros têm condições para estar lá (porque é caríssimo, complicadíssimo, não se trata apenas de querer), essas agências assentam exclusivamente no trabalho dos repórteres locais.

Shah começou a fotografar às escondidas dos taliban, disfarçando a câmara num lenço. Era o fim dos anos 1990. Os taliban controlavam o país. Fotografar era crime. Ele fotografou durante vinte anos. Viu os taliban caírem com o pós-11 de Setembro, teve esperança depois disso, viu os taliban voltarem, fortalecerem a sua guerrilha, viu tropas estrangeiras chegarem e partirem, milhares de jornalistas chegarem e partirem, biliões de dólares chegarem e partirem. Em 2016 escreveu um testemunho lancinante a dizer que tudo estava pior ainda do que no tempo do poder taliban, já não havia esperança. Ele, pai de cinco filhos, não podia sequer sair com eles à rua, viviam trancados em casa. E, de cada vez que ia trabalhar, só pensava em carros armadilhados, bombas suicidas. Era já chefe dos fotógrafos da AFP, quase vinte mil fotografias suas tinham corrido mundo. Toda a gente que está a ler esta crónica já deve ter visto uma das imagens de Shah.

Há três semanas, foi pai pela sexta vez, finalmente uma menina. E na segunda-feira morreu, quando o bombista do ISIS, mascarado de seu camarada de profissão se fez explodir. Tantas e tantas vezes Shah cobrira ataques suicidas, mostrara ao mundo aquele horror, e esta semana estava não só no lugar errado, à hora errada, como mano a mano com um falso repórter.

Vi algumas das imagens mais terríveis de Shah, logo após a carnificina dos atentados. Mas também muitas outras, em que dá um nó na garganta o quanto o Afeganistão é belo e bravo. Lá estão as montanhas de Cabul, no Inverno com neve, no Verão, com flores. Lá estão as crianças a jogarem à bola em frente aos buracos dos budas que os taliban rebentaram em Bamiyan. Lá estão as lagoas inacreditavelmente azuis de Band-e-Amir. Lá está a jovem lutadora de boxe Sadaf Rahimi, como as jovens lutadoras que há dez anos conheci no estádio de Cabul. Lá está a primeira mulher piloto afegã, Niloofar Rahmani, que aos 23 anos enfrenta ameaças de morte por fazer o que faz. Lá está uma mulher a esvoaçar na praça de pombas brancas de Mazar-i-Sharif. Como não pensar em todas as afegãs que me acolheram no país do mundo onde é mais difícil ser mulher?

E talvez porque Rangina Hamidi agora está em Cabul, talvez porque ela trabalha com tantas viúvas, pensei na mulher de Shah Marai, agora viúva, com cinco filhos e uma recém-nascida, que vai crescer no país mais difícil do mundo para ser mulher. Mas onde, ainda assim, dentro de quatro paredes, as mulheres tiram de dentro de si mesmas uma beleza que vem de há milénios, e com ela bordam flores, folhas, árvores ou alguns dos infinitos padrões geométricos que fizeram o esplendor da arte islâmica.

3. Conheci Rangina em Kandahar, no sul do Afeganistão. Tinha sido a capital taliban, e continuava a ser um bastião taliban em muitos bairros, muitas periferias. Uma cidade onde é impossível ver uma afegã fora de uma burqa. Em Cabul, muitas andam apenas de lenço na cabeça, mas em Kandahar a tradição tribal dos “pashtun” (etnia dominante no sul e leste do Afeganistão) aliada à repressão taliban tinham gerado uma paisagem sufocante, em que a cara, a voz de uma mulher, simplesmente não tinha lugar público. Nesses dias, os taliban haviam rebentado com uma cadeia perto para libertar muitos dos seus homens, a frente de batalha entre as tropas estrangeiras e os taliban estava nas redondezas da cidade, e temia-se que os taliban recapturassem a própria cidade, a qualquer momento. Era este o clima.

Não se podia chegar a Kandahar por estrada, nem os voos comerciais estavam a funcionar, eu apanhara uma boleia excepcional com uma avioneta da Cruz Vermelha, ia escrever sobre o hospital que eles ajudavam a gerir em Kandahar, e que tinha uma primeira equipa feminina para ginecologia e obstetrícia, um dos grandes dramas no Afeganistão, porque as mulheres são privadas de cuidados médicos para não terem de se expôr a médicos homens, e isto faz do Afeganistão o fundo do mundo quanto a mortalidade infantil e materna.

Troquei mensagens com Rangina e ela mandou um carro até ao lugar onde eu estava. Era uma das regras ali. Não era possível uma mulher sair andando sozinha, muito menos uma estrangeira de cara descoberta. Foi assim que cheguei à casa onde 13 mulheres bordavam a seda todas aquelas maravilhas, para que depois centenas de mulheres as reproduzissem. O que era aquilo? Um projecto de empoderamento das mulheres numa sociedade onde não podem trabalhar fora de casa. Ali estavam aquelas 13, com os seus dedos mais velozes do que a luz, com linhas e dedais, e um sentido de humor incólume.

Tinham deixado as burqas penduradas à entrada (até hoje tenho a foto desse bengaleiro, a que ilustra este artigo), e vestidas com aquelas cores claras e vivas, que são as que estão por baixo, riam dos homens e das suas desgraças. Umas eram viúvas, como tantas num país há tempos infindáveis em guerra, outras casadas com homens inválidos, ou que tinham acabado por se viciar em haxixe, cocaína. O Afeganistão continuava a ser aquele grande produtor de papoilas, campos controlados por vários senhores da guerra, que depois alimentam o mercado mundial, e que para milhares de afegãos pobres são o único trabalho.

Ali estavam aquelas mulheres, capazes de ouvir os resmungos dos maridos, sempre que saíam de casa para bordarem juntas, maridos capazes de lhes dizerem, por exemplo, se fores morta não vou apanhar o teu corpo na rua. E elas riam, e bordavam. Tinham passado a ser o sustento da família. Eram independentes. Foi este projecto que Rangina criou.

Nascida em Kandahar, ela fugira para o Paquistão quando a URSS invadiu o Afeganistão, como tantos refugiados. E daí para os EUA, onde acabou por estudar na Universidade de Virginia. Depois do 11 de Setembro, decidira que tinha de voltar lá, ajudar o seu povo. Visitou refugiados afegãos no Paquistão. Mas ao partir, aprendeu uma coisa. Que dar dinheiro e partir não ajudava nada. Tinha de criar oportunidades.
Mas como fazer isso num país em que 80 por cento das mulheres era analfabeta, em que não iam ser autorizadas a dar a cara em público, a exporem-se? Como conseguir a auto-determinação nesta sociedade? Foi assim que surgiu a ideia do Tesouro de Kandahar.

4. Há dez anos, quando lá estive com elas, ainda não se chamava Tesouro de Kandahar, nem tinha um site profissional onde é possível encomendar. São bordados únicos, da tradição Khamak, de Kandahar. Podem ser feitos em lenços, toalhas, vestidos, almofadas, bolsas. A ideia é que sejam simultaneamente auto-determinação, escape espiritual, terapia de violência e sonho, criação, expressão de uma beleza que de outra forma acabaria por não sair. Beleza contra guerra.

Mas ao juntar estas mulheres, criam-se também redes, o que as fortalece, e fortalece a consciência política. Criou-se acesso a cuidados médicos. E uma bolsa para que meninas possam estudar, com garantias regulares de que o dinheiro está a ser gasto nisso.

Dessas 13 mulheres com quem estive, nesse tarde em Kandahar, só duas sabiam ler.

5. Nos primeiros tempos de Rangina, ao voltar ao seu país, uma mulher perguntou-lhe: vais embora, como toda a gente? Ela não foi, continua a coordenar o projecto, agora a partir de Cabul. Dez anos depois escrevi-lhe e ela lá continuava no mesmo email, lembrando-se de tudo, convidando-me a voltar.
Em 2018, o Afeganistão não está melhor do que em 2008 sob muitos parâmetros. E um deles continua a ser a vida das mulheres. No mais recente ranking sobre os piores lugares do mundo para ser mulher, lá vem o Afeganistão, em primeiro lugar com a Síria, num estudo que avalia 153 países.

Bruce Chatwin (que muito amou o Afeganistão) tem um livro póstumo chamado “O Que Faço Eu Aqui?” Foi uma pergunta que fiz várias vezes a mim mesma lá. Sobretudo na primeira manhã que acordei em Kandahar, com explosões atrás da cama. Mas é uma pergunta que, na verdade, nunca mais nos abandona quando nos lembramos de lugares assim. E a pergunta completa é: o que faço eu aqui, em vez de voltar ao Afeganistão?