As eleições presidenciais de 2021 foram certamente as mais surreais da nossa história recente. Desde logo porque se realizaram no período mais crítico da pandemia, antecipado há meses por médicos e epidemiologistas, mas olimpicamente ignorado pelos agentes políticos.

Nem o adiamento de eleições em dezenas de outros países, nem as eleições nos EUA, com votação por correspondência e presencial ao longo de vários dias, foram suficientes para levar o Governo e a Comissão Nacional de Eleições a planear um acto eleitoral diferente do habitual e adequado às actuais circunstâncias. Por outro lado, Presidente da República, partidos e deputados à Assembleia da República não quiseram atempadamente debruçar-se sobre a possibilidade de adiamento, escudando-se na Constituição quando já era tarde demais. A lei da inércia não tem qualquer impacto na política portuguesa, permeada pelo pensar baixinho e por uma débil capacidade de planeamento, de que a gestão da resposta à pandemia é só a mais recente e trágica manifestação.

Nada disto obstou a apelos ao voto sob o sofisma de que “a democracia não está suspensa”, como se o regime político da democracia liberal fosse caracterizado somente pela participação eleitoral ou ficasse em causa por as eleições serem adiadas pelo período necessário à atenuação da situação sanitária. O absurdo ficou ainda mais patente quando o incumbente, em pleno estado de emergência e confinamento, decidiu apelar a que os portugueses saíssem de casa para votar. Consagrada a excepção às restrições à circulação para depositar os votos nas urnas, vale a pena salientar que esta foi apenas mais uma das muitas que os membros da classe política não se têm coibido de decretar, demonstrando à saciedade como aqui e agora se aplica o 'orwelliano' adágio de que somos todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Nuns dias apelidam os portugueses de irresponsáveis e atribuem-lhes culpas pelos terríveis números da pandemia, noutros pedem-lhes um sobressalto cívico e que coloquem em risco a sua saúde para legitimarem um regime em que à crónica elevada taxa de abstenção se veio juntar a ameaça populista de direita que os políticos tradicionais não têm sabido descodificar nem combater.

E para quê? Para votar numas eleições cuja campanha foi pouco edificante, marcada por insultos, chavões anacrónicos, o já clássico desconhecimento dos poderes presidenciais e em que apenas um dos candidatos, por sinal o vencedor, tem vocação e preparação para ser Chefe de Estado. Quem não se quisesse abster também poderia colocar a cruzinha em Eduardo Batista, o não-candidato que com apenas 11 assinaturas, seis delas apenas válidas, teve direito a encimar o boletim de voto.

Claro que este quadro surrealista não ficaria completo sem a noite eleitoral. As sondagens acertaram e, sem surpresa, Marcelo Rebelo de Sousa foi reeleito. Logo correu o líder da agremiação do Largo do Caldas a afirmar que “todos os objectivos do CDS para esta eleição foram conseguidos”, fazendo lembrar aquele aluno que, num trabalho de grupo, não dá qualquer contributo, mas aparece na apresentação a colher os louros do trabalho dos colegas.

À esquerda, João Ferreira ignorou a transferência de voto de eleitorado tipicamente comunista para o Chega, Marisa Matias não conseguiu disfarçar a desilusão e Ana Gomes não foi além de um fraco prémio de consolação.

Vitorino Silva, que marcou a campanha com mensagens simples e desarmantes em momentos genuínos que ficaram na memória colectiva e demonstraram um apurado sentido mediático, foi igual a si próprio e talvez possa aspirar a ser eleito deputado nas próximas eleições legislativas – merece-o e o país também.

Tiago Mayan, que partiu para esta corrida como ilustre desconhecido, fez um percurso interessante e teve um resultado honroso, mas ainda não conseguiu ultrapassar o notório amadorismo. Duas lições que a Iniciativa Liberal pode retirar deste resultado: no campo das ideias e da sua tradução em propostas políticas, é preciso ir muito além do foco nos impostos; no campo das pessoas, a escolha dos candidatos importa. Até pode haver uma “onda liberal”, só que há um tsunami populista que arrasta vários segmentos do eleitorado e extravasa largamente o eixo Foz-Avenida de Roma-Cascais ao qual a IL apela. A democracia também é demografia.

Quando poderíamos pensar que o teatro do absurdo já teria terminado, eis que aparece Rui Rio, líder do PSD, maior partido da oposição e de que Marcelo Rebelo Sousa é uma figura histórica, a dedicar grande parte da sua alocução aos resultados de André Ventura, elogiando-o por vencer em concelhos onde o PSD nunca venceu. Foi mais uma confissão de impotência no que diz respeito à resolução da crise que aflige a direita desde 2015.

Ventura, por seu turno, cumpriu com o prometido e demitiu-se pela segunda vez, para ser certamente reeleito pelos militantes do Chega em nova votação ao estilo norte-coreano. O autoproclamado candidato anti-sistema é, afinal, igual aos outros nos jogos de sombras e teatrocracia. Pode ter saído do sistema, mas o sistema nunca sairá dele.

Salvou-se o bom discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, uma espécie de Presidente-Rei do Portugal contemporâneo, numa noite que representa, por diversas razões, um novo capítulo da história democrática. O regime precisa de se modernizar para promover uma maior participação eleitoral e aprofundar a representatividade e tem forçosamente de responder aos problemas económicos e sociais que enfrentamos para evitar a fragmentação social e a polarização política em que o populismo medra. Marcelo demonstrou ter consciência disto mesmo, mas encontra-se perante uma conjuntura de difícil gestão. Tanto a esquerda como a direita democráticas têm de se regenerar e reconfigurar para procurarem reconquistar aqueles que se sentem injustiçados e ignorados pelo sistema. A contagem decrescente já começou.