Se tudo seguisse a ordem natural, este seria o mandato em que o povo brasileiro elegeu Dilma Rousseff como presidente. Se tudo seguir a lei e a ordem natural, novas eleições diretas só em 2018. Só que entretanto aconteceu muita coisa no Brasil e o país vive dias que se julgariam senão impossíveis pelo menos improváveis há alguns anos.
Começou quando Dilma, amedrontada pelos escândalos da operação Lava Jato que se aproximavam dela a partir de políticos ligados ao seu governo, curto-circuitou as vias de comunicação com o Congresso. Essa ligação era, na prática, o que garantia a sua sustentação parlamentar, e ao cortar com ela, Dilma perdeu não só a base aliada, mas também interlocutores com quem negociar politicamente.
Com Lula, que queria ter concorrido no seu lugar à presidência em 2014, Dilma tinha relações tremidas desde que ela decidiu bater o pé em prol da sua própria reeleição. Mais preocupado em visitar as obras num apartamento triplex - que depois negaria -, ou receber visitas na sua quinta - que diz ser de amigos -, Lula abandonou Dilma aos leões para que ele próprio surgisse num momento de instabilidade total como salvador da pátria e dos interesses de longevidade da gestão do PT. Iria refazer a base aliada com os parlamentares envolvidos nos escândalos e Dilma teria que dançar conforme a música que ele escolhesse. Só faltou combinar tudo isso com todos os outros atores e atrizes dessa novela. Como nenhum político sobrevive sem apoio, Dilma caiu. E caiu rápido.
A queda não estava nos planos de Lula. E quando resolveu reagir já era tarde.
Mas foi Dilma derrubada por quem a elegeu?
Não exatamente.
Dilma caiu por um - até hoje discutível - processo de impeachment baseado em práticas recorrentes noutros governos (como o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), as chamadas Pedaladas Fiscais. Pedalada fiscal é um termo que se refere a operações orçamentais realizadas pelo Tesouro Nacional, não previstas na legislação, e que consistem em atrasar a transferência de verbas para bancos públicos e privados que estão a fazer pagamentos de programas sociais com a intenção de aliviar a situação fiscal do governo num determinado mês ou ano. Trata-se, como é óbvio, de uma manobra ilegal. O impeachment foi aprovado por aqueles que davam sustentação ao seu governo, parlamentares que estão envolvidos até o pescoço na operação Lava Jato e que se viram 'prejudicados' no acesso ao dinheiro público desviado, como justiça tem demonstrado.
Os deputados “elegeram” Temer e “elegem” quem eles querem.
Temer só assumiu a presidência, porque a base aliada de Dilma aprovou o impeachment numa manobra clara para manter a sua proximidade ao centro de decisão. Embora tenha sido substituída a equipa que conduzia a política nacional, a base voltaria a ser a mesma de antes. Michel Temer não é um candidato eleito pelo voto direto, mas pelo Congresso que aprovou a queda de Dilma e o conduziu à presidência do país. Temer passou a ser um presidente parlamentar. E como em todo governo parlamentar, ele formou um governo com a presença ativa do parlamento.
O Brasil de hoje é uma República Parlamentar e os partidos que entraram na divisão do bolo ocuparam todos os espaços do poder. Para assumir a nação, a negociação foi intensa e os partidos foram ouvidos ao limite de suas exigências. Se você está nesse barco, vai abrir mão de um presidente que cedeu a todas as exigências da sua base aliada? Temer só cairá se houver uma grande pressão da opinião pública mas, atenção, os deputados só farão a “troca” se houver um presidente para colocar no lugar de Temer que os sirva de maneira mais vigorosa ainda.
Quem pode assumir o governo?
Todos os nomes que podem eventualmente agradar aos deputados do Congresso estão envolvidos na Lava Jato e poderão, em poucos meses, ser também eles afastados do poder, apanhados pela operação que investiga a corrupção. Na ordem natural, conforme determina a Constituição Federal brasileira, numa eventual queda de Temer quem assumiria seria o presidente da câmara dos deputados, Rodrigo Maia, também investigado pela Lava Jato, mas ainda não indiciado. Qual seria o risco? De o Brasil ficar sem o terceiro presidente num período inferior a um mandato completo - que seria o de Dilma. Isso tudo na hipótese de queda de Michel Temer.
O partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB, pensou em sair da base aliada e voltou atrás afirmando que “aguardaria o avanço das investigações sobre os audios divulgados”. Na verdade o PSDB viu que se ficasse de fora, não poderia dar palpites na escolha de um eventual sucessor de Temer. Verdade seja dita, não é nada constrangedor ao partido de FHC ficar, como se diz, em cima do muro, é prática recorrente.
O ex-presidenciável Aécio Neves, que disputou palmo a palmo com Dilma e perdeu a corrida mesmo junto à meta, está fora do jogo. Era o sonho de regresso ao poder da turma de Fernando Henrique. Citado na delação feita pelos donos da J&F, Joesley Batista e o seu irmão - os maiores produtores de proteína animal do mundo - gravaram conversas com Temer, com o próprio Aécio e assessores e apresentaram-se com uma reação desenhada para parecer respeitável (foram perdoados de qualquer crime).
Aécio viu a sua irmã, que é também a sua assessora mais próxima, ser presa; viu as suas casas vasculhadas pela polícia federal e o seu mandato de senador da república interrompido pelo Supremo Tribunal Federal. Aécio Neves, ao que parece, enterrou seu futuro político, embora política seja uma caixa de surpresas. Ainda que Temer não caia por conta das denúncias dos irmãos Batista, no próximo dia 6 de Junho haverá o julgamento no STF do processo sobre a chapa Dilma-Temer, com provas contundentes de uso de dinheiro irregular na campanha. Se for condenada a chapa, Temer cai. Até semana passada seu placar no STF era positivo, hoje não está nada favorável, diria crítico.
Mas e Lula, quais são as suas hipóteses?
Sempre as há. Quando se trata de política, sempre há hipóteses. Mas são remotas. Lula está com a corda no pescoço, a Lava Jato é o seu “calcanhar de Aquiles”, é pouco provável que não seja condenado numa das ações. Se for condenado, poderá recorrer para uma instância de justiça superior e, ao ganhar tempo, aumentar a temperatura do discurso dos seus aliados e as manobras.
Saindo uma segunda condenação rápida, perde a hipótese de concorrer em 2018 e acaba a sua trajetória política. Ele é a única opção de uma parte do eleitorado que ainda confia no seu discurso. E de radicais que se infiltram em manifestações, como a que aconteceu em Brasília convocada por centrais sindicais para fazer uma reivindicação justa, e que acabou vandalizada, com incêndio e danificação do património público. O propósito é sempre o mesmo: transmitir a imagem de descontrolo social.
O próprio Lula sabe que as hipóteses são remotas face à sua situação jurídica, e por isso o atual quadro de instabilidade com Temer, causado pelas denúncias, caiu-lhe do céu. Muitos até defendem que Lula estaria por trás das denúncias dos irmãos Batista e que isso seria uma troca de favores resultante de tantos mil milhões liberados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social na sua gestão e na de Dilma.
Com todo o ruído e danos causados, seria esse o momento de dar a volta ao jogo, tentar aprovar uma emenda constitucional para que haja eleições diretas num prazo curto, curtíssimo - antes, portanto, de sua condenação. E apostar nas atuais sondagens de opinião que colocam o ex-presidente virtualmente à frente nas intenções de voto.
Mas quem faria isso? Quem teria que aprovar essa manobra? Aqueles deputados que, primeiro abandonaram Dilma e depois elegeram Temer como presidente. O parlamento. Vamos lembrar o que disse Lula em 1993 sobre os seus colegas do Parlamento: "Há uma maioria de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. Se houver tempo de manobra e condições para combinar com todos os “picaretas”, seria Lula capaz de seduzi-los? Em política, tudo pode acontecer. Ainda que você não acredite em bruxas, que elas existem, existem.
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