No dia 20 de setembro, Theresa May foi a Salzburgo. A Áustria tem a presidência rotativa e simbólica do Conselho da UE e May foi ver se convencia os 27 parceiros europeus a aceitar o seu famigerado “Plano Chequers”. Segundo a opinião geral dos jornais ingleses, foi humilhada. O facto de a imprensa britânica, tanto à esquerda como à direita, considerar uma humilhação os continentais não concordarem com as suas propostas dá uma ideia da altaneira arrogância com que a ilha ainda se considera. May não sofreu nenhuma humilhação, apenas um revês. E nada que não se esperasse: Michel Barnier, o negociador credenciado pelos 27, já tinha dito de várias maneiras que a proposta não tinha pernas para andar. Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, até brincou com a Primeira Ministra britânica: “A senhora May quer comer o bolo e ficar com ele.”

O vice-Presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans especificou no forum da Bloomberg: “Não se pode pretender ter circulação livre de produtos, mas não de serviços – não há nenhum produto no mercado que não tenha uma componente de serviço. Nem pode o Reino Unido ficar dentro do mercado comum sem que haja livre movimento de pessoas. É como se eu dissesse: saio do vosso clube de futebol mas posso ir jogar no vosso campo uma vez por semana”.

O problema mais geral é o entendimento entre o Reino Unido e a União Europeia. Ao declarar oficialmente que saía da UE, em 29 de Março de 2017 (invocando o Artigo 50 do Tratado de Lisboa), Londres não apresentou um plano de como essa saída se processaria.

De acordo com a confusa campanha que levou à aprovação do Brexit por referendo, os britânicos achavam que estavam demasiado condicionados politicamente pela UE e que a saída lhes daria não só autonomia como os libertaria das obrigações financeiras inerentes. O dinheiro com que contribuíam para os vários fundos europeus podia ser usado, por exemplo, para melhorar o Serviço Nacional de Saúde. E os cerca de 200 mil europeus que trabalhavam no país seriam substituídos por ingleses, garantindo trabalho a toda a gente. O que não se falou foi na gigantesca tarefa de desfazer anos de convivência com o continente, que implica mudanças legislativas e o retorno das restrições normais entre países, como barreiras alfandegárias, circulação de pessoas, diferenças de critério quanto a produtos e serviços, e muitas outras minudências. Tudo isso seria resolvido nos dois anos entre a decisão de sair e a saída, a 29 de Março de 2019. Também não se falou nas desvantagens da separação, que isolam o Reino Unido do seu mais importante mercado, a Europa.

Mas, para que houvesse esse entendimento entre ilhéus e continentais, era preciso que os ilhéus decidissem o que queriam, ou seja, o que iriam propor aos continentais. Acontece que os britânicos não se conseguem entender em diversos pontos. No próprio partido Conservador, várias propostas se digladiam entre os “hard Brexitiers” (favoráveis a uma saída sem acordos prévios”), os “soft Brexitiers (que queriam negociar uma saída com cláusulas favoráveis) e os “remainers” (que não queriam sair). No partido Trabalhista também não há unidade quanto a ficar ou sair, ou como sair. À medida que se ia computando os custos da decisão para a economia britânica, o número de cidadãos, de políticos e de figuras públicas a favor de ficar na EU foi crescendo, ao mesmo tempo que o Governo insiste, com alguma razão, que o povo disse o que quer no referendo e não seria democrático contrariar essa decisão.

Resumindo as muitas vertentes em questão, é preciso decidir se se mantem a livre circulação de produtos – sem barreiras aduaneiras – e se continua a livre circulação de pessoas. O mercado financeiro e a indústria estão completamente integrados no sistema europeu e não seria fácil desfazer a complexa teia de serviços e fornecimentos. E há ainda um terceiro problema, dependente dos outros dois, que é a necessidade de uma fronteira física, terrestre, entre a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido, e a República da Irlanda, que continua na União Europeia.

Enquanto os britânicos discutiam entre si, a UE aguardava, avisando logo que não estava disposta a grandes cedências – primeiro porque quem queria o divórcio eram os britânicos, e segundo porque uma saída que lhes fosse favorável abria um precedente perigoso para a coesão da UE.

Para resumir uma longa história, que se arrasta há mais de um ano, finalmente Theresa May reuniu o seu Governo em reclusão na quinta de Chequers, nos arredores de Londres, e produziu uma proposta concreta para apresentar a Bruxelas. Mal saiu o “plano Chequers”, começaram os problemas. Dois ministros que tinham estado na reunião, demitiram-se logo a seguir, por não concordarem com o plano. Um deles, Boris Johnson, um “hard Brexitier” tão folclórico como mediático, começou a escrever uma coluna semanal no “The Telegraph” em que descasca impiedosamente os planos de May, com frases como “Ela vai para a frente de batalha a agitar a bandeira branca”.

O “plano Chequers” também não convenceu a União Europeia. A frase de Tusk faz algum sentido: os britânicos querem todas as vantagens do mercado comum sem nenhum dos inconvenientes. No caso concreto da Irlanda, que é aquele que de facto se afigura mais insolúvel, a proposta é que não haja nenhuma fronteira. O Reino Unido pode negociar sozinho com o resto do mundo; deixa de estar sob jurisdição europeia nas pescas e na agricultura; os tribunais britânicos voltam a reger-se pelas leis do Reino Unido; e, evidentemente, o país deixa de contribuir para o orçamento comunitário.

Mas o mais interessante é que o plano também não agradou a ninguém no Reino Unido. Os “hard Brexitiers” acham que faz concessões de mais à Europa – daí a atitude de Jonhson; os “remainers” receiam a perda das facilidades que têm no continente.

Até o Partido Trabalhista, que tem tomado a atitude surreal de se alhear à questão, limitando-se a atacar os conservadores pelo que fazem e não fazem, mas sem propor nenhuma alternativa, deu agora sinais que está a considerar o que fazer. Jeremy Corbyn, que passou os últimos dois meses numa discussão bizantina sobre anti-semitismo, finalmente disse que está aberto à possibilidade de um novo referendo. Os trabalhistas estiveram reunidos em congresso três dias no final de setembro, e tal como os conservadores, não se entenderam entre si. No discurso final, Corbyn falou do grande projecto trabalhista caso chegue ao poder: investimento de milhões numa economia verde, que trará milhares de novos empregos. 80% de energia limpa em 2030 e 100% em 2050. Estatização de sectores que foram privatizados, como o caminho de ferro. Um bom plano, mas um plano que ignora completamente as questões relacionadas com o Brexit. Quanto a isso, disse que não concorda com o plano Chequers nem com um hard Brexit, mas concordará com um plano que seja bom para os trabalhadores e desenvolva o país.  Respeita a vontade popular do referendo, mas está aberto a outro, se o partido assim quiser. Ou seja, continua a não considerar a questão prioritária, numa altura em que é a prioridade máxima do país. Sempre evasivo, o que quer é eleições, pois sabe que tem grandes possibilidades de ganhar.

Contudo, à medida que a data fatal se aproxima e todos os sectores de actividade se mostram cada vez mais incomodados com as contas que andam a fazer, cresce a onda para que mude alguma coisa. A proposta de fazer novas eleições não vem só dos trabalhistas mas também de sectores conservadores, uma vez que todos concordam que Theresa May anda a navegar à vista sem bússola. A outra proposta é um segundo referendo. Mas no fundo, são as duas a mesma coisa, pois umas eleições inevitavelmente teriam como tema principal o Brexit.

Depois de Salzburgo, May voltou a dizer uma coisa que não dizia há meses: “Nenhum acordo é melhor que um mau acordo". Ora, como o acordo que ela propõe é mau, e ninguém apresenta nada melhor, tudo caminha para que o Brexit seja “hard”.

Todos – isto é, os britânicos e os europeus – concordam que o prazo se esgota nas reuniões marcadas para Novembro. Se delas não sair um consenso, a 29 de Março do ano que vem a separação será total. Entretanto, os negociantes mostram-me mais pragmáticos que os políticos: muitas empresas europeias estudam sair do Reino Unido e muitas empresas britânicas estão mudar-se para Paris, Bruxelas, Antuérpia, Munique ... O problema é que há empresas verdadeiramente multi-europeias, como a Airbus ou a BMW/Rolls Royce, que verão o seu fluxo de produção fortemente danificado. Há muitos produtos que são feitos em vários países, com uma estrutura muito complexa que envolve serviços noutros tantos. Desfazer estas redes é complexo e sai muito caro.

Há de facto a probabilidade de um novo referendo. Se o resultado for para ficar, tudo não passou dum susto. Se for para sair, será uma fatalidade. Maior para o Reino Unido, menor para a Europa; mas má, muito má, para a continuação do projecto europeu. Os nacionalismos que já estão no poder na Polónia, na Áustria, na Hungria e em Itália, reforçam-se. E as direitas da Holanda e de França ganham argumentos. Como última consequência, a Europa pode voltar ao xadrez xenófobo que parecia ter acabado de vez em 1945.