Foi a 23 de Junho, vai fazer em breve seis meses. Logo a seguir ao inesperado resultado, tiveram lugar as inesperadas demissões dos políticos que tinham defendido a saída da UE – Boris Johnson e Nigel Farage – e que pelos vistos não queriam executar o que tinham projectado. (Boris Johnson acabou por ficar com a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas não quis dirigir o Gabinete.) Theresa May, uma política quase desconhecida da ala mais conservadora do Partido Conservador, viu-se catapultada a Primeira-ministra; e o Partido Trabalhista, que se tinha oposto debilmente à saída, desapareceu em combate. Os irlandeses e, com muito mais veemência, os escoceses, declararam-se contra a saída, e Nicola Sturgeon ressuscitou imediatamente a ameaça de uma secessão da Escócia.
Ao nível da rua, a vida piorou muito para os oito milhões de estrangeiros que se calcula que vivam na Grã-Bretanha, especialmente aqueles cuja cor de pele, aparência ou sotaque identificam como alienígenas. Cartazes colados nas suas portas, olhares de esguelha e insultos na rua, tornaram-se corriqueiros. Contudo, legalmente, ainda nada lhes aconteceu, uma vez que não está ainda definido qual o seu estatuto – ou estatutos, pois as situações variam muito, desde a mais completa ilegalidade ao visto temporário de residência. Centenas de milhares de pedidos de naturalização ou residência permanente, apresentados por precaução, inundaram os serviços públicos, levando à sua paralisação. Os não-britânicos, entre os quais cerca de 200 mil portugueses (os números são todos estimativas, por causa das situações dúbias e ilegais), passaram a viver num estado de ansiedade constante, à medida que surgiram os boatos mais díspares sobre o seu destino.
(Será interessante, todavia, ver os números oficiais. Em Junho de 2016 estavam catalogados 5,3 milhões de “não-britânicos”, metade dos quais de outros países da UE, isto numa população de 63,7 milhões. Ou seja, oito por cento da população das ilhas era estrangeiro. Por outro lado, há 1,2 milhões de britânicos a viver em países da UE.)
Ao nível oficial, tudo o que Theresa May e os seus ministros têm dito nos seis meses pós-referendo, resume-se nestas afirmações: o Brexit é mesmo para fazer, os estrangeiros têm de se ir embora mas espera-se que os britânicos mantenham o seu estatuto de cidadãos europeus; e o Reino Unido deverá ter acordos comerciais preferenciais com a UE. Basicamente, sol na eira e chuva no nabal.
Ao nível prático, o Governo de Sua Majestade tomou algumas posições nacionalistas bastante radicais. Por exemplo, em Outubro informou os professores estrangeiros da London School Of Economics que não poderiam continuar a prestar serviços de aconselhamento ao Estado. Num outro caso, mandou que as empresas entregassem ao Ministério do Interior listas dos funcionários estrangeiros.
Mas, a 4 de Novembro, três juízes do Supremo Tribunal inglês decidiram que o Reino Unido só poderá invocar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa (isto é, o pedido formal de saída da UE) com a aprovação do Parlamento. Esta decisão levanta novas questões; deverão os parlamentares votar simplesmente “sim” ou “não”, numa espécie de mini referendo ou, como a decisão dos juízes parece dizer, deverão produzir legislação específica?
O Governo recorreu e o Supremo terá de reunir em pleno (onze juízes) para tomar uma decisão final.
Os tablóides londrinos, que são a favor do Brexit e do nacionalismo mais básico, insultaram os três juízes de forma vil, chamando-os de “traidores do povo” e dizendo inclusive que um deles era homossexual. Aliás, é nos tablóides que o Governo tem o principal aliado e o grande incitador ao racismo e chauvinismo que tomou parte da opinião pública. Diariamente inventam notícias, como a que afirma que “A Rainha é a favor do Brexit”. (A Rainha, seguindo a prudência e a tradição, não se pronunciou abertamente sobre o assunto, limitando-se a frases neutras de circunstância.) Manchetes típicas do “Daily Mail” e do “Sun”: “O fluxo migratório ameaça destruir o nosso modo de vida”, ou “Condutor de autocarro muçulmano coloca em perigo a vida das crianças ao parar para rezar”.
Mesmo com este bombardeamento, a opinião pública britânica dá sinais de cansaço. Ainda em Outubro, uma sondagem mostrou que só 24 por cento dos ingleses acham que a economia vai melhorar com o Brexit, enquanto 53% pensam que vai piorar.
Agora, no dia 7 deste mês, numa votação na Câmara dos Comuns, 461 deputados pronunciaram-se a favor e 89 contra a moção que dá ao Parlamento poderes para fiscalizar (e, em última análise, decidir) os actos do Governo para efectuar o Brexit. Ou seja, a maioria dos parlamentares não quer deixar Theresa May em roda livre.
Segundo o próprio Governo, o pedido de invocar o Artigo 50 será feito até 31 de Março de 2017 – isto depois de concluídas as negociações prévias com a União Europeia quanto ao estatuto do Reino Unido.
Ora, a Comissão Europeia parece não estar por estes ajustes. E dizemos que parece, porque da própria Comissão têm saído sinais confusos. Os governos europeus, com os alemães à cabeça, não estão dispostos a fazer grandes concessões; a livre circulação de pessoas terá de se manter, senão não haverá qualquer favorecimento nos aspectos comerciais (importações e exportações) e financeiros (movimentação de capitais). O Primeiro-ministro do Luxemburgo, aquando da primeira reunião dos seus parceiros da UE em que participou Theresa May, concluiu no fim: “Antes de entrarem, os ingleses queriam muitas exclusões (“opt-outs”); agora que vão sair, querem muitas inclusões (“opt-ins”)
Mas o eurodeputado Guy Verhofstadt, responsável pelas negociações em nome do Parlamento Europeu, veio agora dizer que os britânicos não só poderão ter livre circulação na Europa como poderão, inclusive, participar nas eleições para o Parlamento Europeu. Chama a isto “cidadania associativa”.
Jean-Claude Juncker, o inimputável malabarista que chefia a Comissão, sai-se com platitudes como “Respeitamos e, ao mesmo tempo, lamento a decisão do Reino Unido, mas a UE como tal não está em risco". O que quer dizer, concretamente, nada.
Na verdade, muita água ainda vai passar debaixo da Ponte de Londres antes de se chegar a uma solução clara de como será o Brexit. Que já causou estragos irreparáveis à coesão social no Reino Unido e ao princípio fundador da União Europeia, ninguém duvida. Favoreceu, mesmo que indirectamente, os partidos nacionalistas e divisionistas europeus e acirrou o racismo nas ruas desta Europa em plena crise existencial. Até agora, o balanço é negativo, e as hesitações do Governo de Sua Majestade, dentro duma política de isolamento radical que ao mesmo tempo tem medo de se afirmar, não auguram nada de bom para o futuro. O bom senso, que muitos consideram uma invenção da filosofia europeia, também emigrou da Europa, e não se sabe bem para onde.
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