Segundo o Tratado (assinado em 2009) estes dois anos servirão para discutir as minudências da separação, que não são poucas. Basicamente, que tipo de relacionamento os britânicos (ingleses, escoceses, galeses e irlandeses do Norte) passarão a ter com o bloco de todos os países membros da União Europeia. É um divórcio complicado, quer decorra de forma litigiosa ou amigável. Por esta altura, ou seja, em novembro de 2017, seria de esperar que pelo menos as linhas gerais da separação já estivessem definidas. Ora o que acontece é que não estão. Nem sequer há concordância quanto à ordem pela qual devem ser discutidas.

Entre os cônjuges que agora se separam, há uma diferença de atitude que muito prejudica os britânicos. O lado europeu, ressentido com o afastamento, mostra-se firme na decisão de não fazer concessões nem facilitar a vida à outra parte, dure o processo o tempo que durar; e um consenso de que não perderá muito com esta saída, para lá do seu valor simbólico de decadência do projeto europeu. No Continente tudo continuará como dantes.

O lado britânico, pelo contrário, há uma corrida contra o tempo, ao verificar-se que a separação acarreta muitos problemas práticos que não foram previstos e cuja solução é essencial para a economia do país. No princípio pensava-se (dizia Theresa May) que era melhor não ter acordo nenhum (“no deal”), do que fazer um acordo desfavorável (“bad deal”); mas agora, à medida que as negociações se arrastam sem resultados, começa a ver-se que o “no deal” terá consequências catastróficas. Aumenta a pressão, reina a confusão e a expectativa.

Todos os britânicos (os pró e os contra a saída) concordam agora que a campanha para o referendo britânico foi mal conduzida, enganadora e precipitada. Ou seja, enquanto os “leave” (ou “brexitiers”) apregoavam promessas de uma Grã Bretanha livre dos constrangimentos europeus e próspera como nos tempos do Império, e os “stay” contra-atacavam com os receios de um país isolado e sem auto-suficiência, nenhum dos lados fez as contas do que custaria a separação, ou estudou de como se processaria na prática. Questões muito práticas – taxas aduaneiras, movimentação de pessoas, parcerias comerciais e industriais, e legislação – não foram devidamente esmiuçadas. “Separamo-nos, voltamos a ser independentes, livramo-nos dos estrangeiros e vamos fazer negócios bilaterais fantásticos” era a ideia vencedora. Debalde os setores mais informados – a banca, seguros, grandes empresas, serviços financeiros – mostravam preocupação com o que poderia acontecer. Análises posteriores da votação (53,4% “leave”, 46,6% “stay”) mostram que os mais instruídos, jovens, urbanos e afluentes (ou seja, mais informados) votaram a favor de ficar na Europa, enquanto os mais pobres, os velhos e os provincianos (ou seja, menos informados) acreditaram que as suas vidas melhorariam fora da UE.

É interessante recordar o jogo político que levou ao referendo: o Partido Conservador, então no poder, estava dividido, mas o primeiro-ministro, James Cameron, a favor da permanência, achou que podia consolidar a sua posição com um resultado a favor da Europa. Lançou o plebiscito porque estava certo de que ganharia. Mas perdeu e não teve outra saída se não demitir-se. Mas, os conservadores vitoriosos, que eram a favor da saída, nomeadamente Boris Johnson, Michael Gove e Liam Fox, queriam sair mas não estavam disponíveis para tratar da saída; ninguém se chegou à frente para o lugar de Primeiro Ministro, acabando por ser escolhida uma figura menor, Theresa May. O Partido Trabalhista, também bastante dividido, praticamente não fez campanha; e o Partido Liberal, a favor do "stay", não teve meios nem massa critica para se fazer ouvir.

Tendo uma pequena margem parlamentar, May decidiu convocar eleições intercalares para, a cavalo no Brexit, aumentar o número de deputados conservadores. O resultado foi um desastre; perdeu a maioria e teve de se aliar ao ultra conservador partido Unionista da Irlanda do Norte para ter votos suficientes no Parlamento.

Temos então Theresa May, uma senhora muito bem posta, ultra-conservadora, e que anteriormente foi uma apagada, porém polémica, Ministra do Interior de Cameron, a dirigir a magna tarefa de negociar com a União Europeia, ao mesmo tempo que precisa de criar um programa económico e diplomático para o Reino Unido pós-Brexit, e ainda resolver problemas sem solução, como a nova fronteira a formar entre a Irlanda do Sul (membro da UE) e a Irlanda do Norte, que continua britânica.

A UE nomeou o seu negociador-chefe, o francês Michel Barnier, e os ingleses são representados por David Davis, Ministro para o Brexit. Boris Johnson, que aceitou graciosamente ser Ministro dos Negócios Estrangeiros, também tem a ver com as negociações que tão exuberantemente defendeu.

Logo à partida surgiu uma questão de ordem: os ingleses querem negociar tudo ao mesmo tempo; os europeus querem que primeiro se decida quanto a Grã Bretanha terá de pagar para sair e depois se decidam então os vários parâmetros da saída: “pay first, discuss after”.

A UE faz as contas entre 60 e 100 mil milhões de euros, uma quantia muito superior ao que os ingleses querem pagar, que andaria pelos 50 mil milhões. O facto de ser em euros, e não libras, ainda penaliza mais os ingleses.

Seja qual for a quantia, ainda não se chegou a acordo. E a decisão europeia de não negociar mais nada enquanto não se acordar este ponto tem feito estagnar todas as outras partes da separação. Ou seja, os empresários ingleses, grandes e pequenos, ainda não sabem como serão os acordos de trocas comerciais e cada vez pressionam mais o Governo para que tome decisões. Para os negócios, a incerteza quanto ao futuro é um cenário pior do que um mau futuro.

Mas não são só os acordos pós-Brexit que estão em banho maria. Há a magna questão de transcrever para o ordenamento legal britânico todas as leis e regulamentos europeus que vigoravam na Grã Bretanha e que cessam de valer em 2019. Chama-se “The Great Repeal Bill” e é um trabalho legislativo enorme, que ainda não começou a ser feito e que todos concordam que levará “vários” anos. Até lá, já há quem proponha que o país continue a acatar as decisões do Tribunal Europeu mesmo depois da saída. Ou seja, mais uma “vantagem” de sair da UE – a libertação do emaranhado de normas que os brexitiers acham que atrapalham a vida do país – que se dilui e fica sem efeitos reais.

Uma vez decidido o valor do divórcio, passar-se-á às negociações de tratados comerciais e movimentação de pessoas. Barnier já disse que há várias opções sobre a mesa, incluindo um acordo semelhante ao que a UE tem com o Canadá, ou outro ao modelo da relação com a Noruega. E acrescentou que qualquer relacionamento futuro implicará direitos e obrigações; “não é possível ter um acordo de livre-comércio simultaneamente com um esquema de mercado unificado”. Ou seja, os ingleses não podem ter as vantagens de estar na UE e a independência de não estar.

Theresa May tem andado em constantes viagens pela Europa – Estónia há duas semanas, Florença na semana passada, Paris entre as duas – tentando quase que em desespero, ou com um desespero crescente, fechar algum acordo. Algum, porque nenhum foi concluído. Nos intervalos vai ao Parlamento ouvir as queixas da oposição e até de membros do seu próprio partido, divididos entre a linha dura – “no deal” – e a linha pragmática – qualquer “deal”.

Em Florença, a senhora disse que espera uma “nova dinâmica” nas negociações, mas acrescentou que “isso ainda não aconteceu”.

Em Londres, May tem outro problema de peso em mãos, que é o chamado “Universal Credit”, o sistema de apoios sociais aos mais pobres e desempregados. Introduzido em 2013 pelos conservadores para substituir um grupo de programas sociais, foi modificado em abril, levando a que alguns beneficiários estejam há meses sem receber. A pressão social aumenta, alimentada pelos trabalhistas.

Já há um movimento difuso, que engloba aqueles que sempre foram contra o Brexit e deputados de todos os partidos, inclusive conservadores, a favor de um segundo referendo. Quase de certeza que o resultado seria diferente, pois entretanto os ingleses, ricos e pobres, perceberam que a saída trará mais problemas do que benefícios. A agricultura, só para dar alguns exemplos, depende de mão-de-obra imigrante; os serviços hospitalares têm milhares de enfermeiros europeus; as exportações inglesas beneficiam da taxa zero para vender mais na Europa; a City londrina deve a sua pujança ao mercado europeu, e o milhão de britânicos que vive no Continente não quer perder o seu estatuto de cidadão europeu.

No entanto, é pouco provável que haja novo referendo. Os trabalhistas não são contra mas também não são a favor – Corbyn tem criticado os conservadores por não andarem com as negociações do Brexit, não pelo Brexit em si. O custo, o ridículo e a confusão de um novo referendo seriam a morte instantânea do Partido Conservador, que apesar de tudo prefere permanecer nos cuidados paliativos até que Theresa May seja substituída, num futuro não muito distante.

Pois é, o Brexit foi um mau passo para o Reino Unido, e o modo como está a ser conduzido é um autêntico tropeção. O país não ganha, mas a União Europeia, mesmo que consiga negociar bem a saída dos ingleses, também sai a perder. Sejam quais forem as cenas dos próximos capítulos.