O médico escocês Alexander Russell, nascido em 1715, terá sido um dos primeiros a identificar a Leishmaniose Cutânea durante os 13 anos que fixou residência em Alepo ao serviço da companhia inglesa do Levante. Observando que este tipo de infecção cutânea é hiperendémica em Alepo, regista que por essa razão é apelidada por europeus e pelos turcos como sendo o “Mal de Alepo”.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX a doença ganha fama de ser um dos mais horríveis suplícios do oriente e passa a ser também conhecida por “Febris Aleppensis” ou “Malum Alepporum”. Escritores profícuos como Karl May, referem a maleita na distância, particularmente nas aventuras que se desenrolam “de Bagdade a Istambul”.
Aquela que se tornou, no entanto, ao longo do século XX, numa doença infecciosa persistente, mas controlada, transforma-se com o despoletar da guerra na Síria em 2011, num surto que duplica os números de infecções do período pré-guerra, levando Álvaro Acosta-Serrano, professor da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, a alertar, em declarações numa publicação em 2016, que um sistema de saúde devastado, milhões de deslocados internos e de refugiados e condições no terreno insalubres criaram um coquetel perfeito para as doenças infecciosas se espalharem. Estado de coisas aparentemente normal, ajustado a contextos de conflito onde a escassez dos recursos médicos se centram em salvar vidas, ao passo que todas as outras ameaças à saúde são tendencialmente negligenciadas.
De Alepo muitos partiram, alguns ficaram.
Tive a oportunidade de em Outubro conhecer pessoalmente a Irmã Anne Demerjian, religiosa da congregação das irmãs de Jesus e Maria, que decidiu ficar.
Conta que quando a guerra começa o responsável provincial em carta oficial dá total liberdade às religiosas para partirem ou ficarem. Caso optassem por sair, poderiam escolher o país para onde gostariam de ir. Todas decidiram ficar. No seu caso, acrescenta segura, foi o momento em que se sentiu mais forte.
Anne Demerjian, 51 anos, engenheira civil de formação, falava, a propósito de uma campanha para a ajuda de cidadãos sírios, promovida pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), na cripta da Igreja Senhora da Conceição, no Porto. O mote era a necessidade de apelar à ajuda na reconstrução de Alepo, onde chegara em 2003, 9 anos antes da guerra chegar à cidade.
Sintetizava num PowerPoint as razões para se investir na educação e apoios psicossociais às crianças, destacando 3 milhões de crianças que nasceram durante a guerra e que testemunharam por isso, na sua curta vida, apenas ódio, guerra e morte, o que lhes negara a experiência da paz e que poderá comprometer irremediavelmente o seu natural desenvolvimento.
Em entrevista à Renascença, a 19 Outubro de 2018, adopta um tom mais confessional, fala um pouco desse espírito de missão que entre outras coisas a fez ficar. Conta que perguntava “Senhor, o que queres de mim?” e essa força conduzia-a para “outras construções”, como se quisesse dizer “constrói a minha casa”, mas não necessariamente uma casa de tijolo. Manifesta um sentimento de gratidão por participar na construção das almas do seu país, e das suas casas. Desse processo, reconhece pragmaticamente que apenas dizer naquelas circunstâncias “Jesus ama-vos”, não chega, porque a população retorquiria que tinha fome. O foco da ajuda passava por isso pela ajuda espiritual e material.
Destaca o mesmo que conta na palestra sobre a determinação da população que ficara em Alepo e que decidira “ir em frente apesar de tudo o resto”, e fala do espanto de "durante a guerra ver as igrejas sempre cheias e as pessoas a rezar. Um dia a igreja era atingida por uma bomba e pensava-se 'amanhã não haverá aqui ninguém’. Mas, no dia seguinte, as pessoas iam e participavam na missa”. Um indicador da importância do papel da igreja, que apesar da guerra e das suas consequências continua o seu trabalho nas comunidades em sofrimento, mesmo em contextos onde o direito à liberdade religiosa é limitado.
A este propósito, é mencionado o relatório da Fundação AIS sobre liberdade religiosa no mundo, entretanto lançado, onde são analisados detalhadamente “196 países, com um foco especial sobre a liberdade religiosa nos documentos constitucionais e outra legislação”, focando-se também em “países onde as violações da liberdade religiosa vão para além das formas comparativamente suaves da intolerância para representarem uma infracção fundamental dos direitos humanos”. Nele encontram-se muitas pistas para conhecer os obstáculos que as comunidades religiosas enfrentam no mundo no contexto actual.
Annie Demerjian, religiosa da congregação das irmãs de Jesus e Maria, poderá ser um dos rostos femininos a celebrar nesta luta que a igreja trava diariamente nos territórios em conflito, e por todo o mundo, contra a guerra e a opressão, onde muitas vezes as filiações religiosas e políticas se sobrepõem, conduzindo à tirania e até mesmo aos massacres das próprias comunidades religiosas.
Estas comunidades de religiosas que prestam ajuda humanitária merecem ser lembradas. São elas que estão no terreno a combater o “Mal de Alepo”, a contrariar habilmente o avanço da picada desse mosquito-palha que infesta tanto os seres humanos como os animais e cujas consequências poderão demorar anos a manifestarem-se, mas que se manifestam sempre e do mesmo modo: primeiro uma ligeira febre, depois uma ulceração da pele sentida como muito desconfortável e duradoura. Quando finalmente desaparece deixa inevitavelmente uma cicatriz profunda, física e emocional que será visível para sempre. São por isso precisos os meios e a coragem para a combater e depois para a prevenir.
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