Esta breve introdução é para que situemos a questão que vem a seguir. Até que ponto as regras do politicamente correto podem, tendo como supremo tribunal as redes sociais, decretar que uma pessoa é racista ou preconceituosa e encerrar-lhe uma carreira, enterrando a sua reputação por conta de um deslize moral? Se nunca errou responda, se faz favor. Se já errou, como a grande maioria dos seres humanos, apenas reflita. Afinal, quem define o que é correto e o que não é? O que pode e o que não se pode dizer ou pensar no mundo globalizado e com uma poderosa patrulha digitalizada?
No Brasil há um jornalista famoso chamado William Waack. É apresentador de um dos principais telejornais do país, o Jornal da Globo, que tem um alinhamento focado em política e economia e é transmitido diariamente por volta das 23:00 horas, com uma importante audiência nacional.
Waack possui um histórico profissional invejável. É licenciado em jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP) e tem um mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Mainz, na Alemanha. Trabalhou nos principais diários de São Paulo e do Rio de Janeiro, na Veja, a maior revista semanal do país, e está há vinte anos na Rede Globo.
Durante a Guerra do Golfo era correspondente internacional e foi sequestrado por homens do exército de Saddam Hussein. Cobriu ainda a Revolução Islâmica no Irão, a guerra Irão – Iraque, a guerra do Líbano e a queda do Muro de Berlim. E ainda a crise na Rússia e no Oriente Médio, a Guerra dos Balcãs, a do Kosovo, a Conferência de Quioto, a morte de Diana, entrevistou o Dalai Lama, o Papa, entre outras personalidades internacionais. Verdade seja dita, não se constrói um currículo desses em longos quarenta anos sem dedicação, talento e retidão. O problema é que Waack escorregou em privado.
Há algumas semanas foi divulgado um vídeo de um momento que antecedia a transmissão do telejornal em direto de Washington, nos EUA, no qual se fazia a cobertura da eleição de Donald Trump. Na imagem aparece o apresentador ao lado de um comentador convidado, ambos posicionados em frente às câmaras, mas ainda fora do ar. Da janela ao fundo, com vista para a Casa Branca, ouvia-se o som de um carro que buzinava insistentemente. Waack, perto de entrar no ar, volta-se para a janela, protesta pelo barulho e comenta com seu colega em voz baixa e em privado que aquilo é “coisa de preto”.
Como um escorregão é tudo o que a tropa de elite do comando-contra-tudo-aquilo-que-não-gostamos-de-ouvir espera de uma personalidade: fogo nele!
Embora não estivesse no ar, as imagens desse momento em off chegaram aos monitores da ilha de edição do telejornal no Brasil, onde um dos técnicos filmou a cena com seu telemóvel. Não eram imagens públicas, pertenciam à Rede Globo. Após tentar negociar durante um ano a filmagem com alguns meios de comunicação - que teriam recusado por não se tratar de William Bonner, âncora do principal jornal daquela emissora – o referido técnico divulgou o vídeo num “grupo de líderes do movimento negro”, alegando que o fez por sentir-se ofendido pela atitude preconceituosa do jornalista. O detalhe é que a divulgação acontece um ano após a gravação, e isso, convenhamos, é no mínimo estranho. Procurei uma instituição que congregasse esses “líderes” para entrevistá-los, se alguém a encontrar, que me avise.
Quando alguém se sente ofendido por alguma coisa, em regra reage imediatamente. Ou procura um advogado e aciona a justiça. Guardar por um ano essa informação e tentar negociá-la com meios de comunicação social, parece, no mínimo, uma atitude um pouco duvidosa do ponto de vista da indignação moral. Mesmo que isso não alivie o erro de Waack.
O que se seguiu foi a viralização do vídeo, acompanhada da energia geradora de ódio com o deslize moral do jornalista. Waack virou o tema da indignação na Internet. E a internet depende de maneira vital de um escândalo que possa desconstruir uma imagem em poucos cliques – especialmente por quem não tem imagem alguma, os chamados losers. Até que surja outra vítima. Este ódio precisa de ser purgado de tempos em tempos para que a pressão baixe. Se possível, dia sim, no outro também.
William Waack não é o tipo de apresentador que cativa pela sua alegria e simpatia. É sério, sisudo e muitas vezes ácido. Já teve, por conta de divergências profissionais, um ou outro curto-circuito com colegas de trabalho. Mas nenhum deles diz uma vírgula sobre o seu carácter, ao contrário, a grande maioria saiu em sua defesa. Quando um caso deste tipo vem a público, logo surgem as vítimas que estavam caladas por diferentes motivos e encontram naquele momento o estímulo para cobrar justiça. Ninguém levantou a mão para dizer que sofreu qualquer tipo de ofensa ou constrangimento por parte de Waack. Nenhum preto, amarelo, azul. Nenhum português, asiático, anão, gordo, magro, feio ou bonito, homossexual ou hétero. Ninguém surgiu para dar depoimento contra ele, embora muita gente que nem o conhece se tenha juntando ao linchamento. Mas uma das vozes destoantes foi um cinegrafista da Rede Globo que o acompanhou durante anos e, por motivos óbvios, o seu depoimento é singular.
“Eu sou preto. Já trabalhei com ele em França, Portugal, Espanha, Índia e em São Paulo. Nesta caminhada de 30 anos fazendo imagens e contando histórias, poucos colegas foram tão solidários quanto o velho Waack. Ele faz parte dos pouquíssimos ‘globais’ que carregam o tripé para o repórter cinematográfico preto ou branco. Na verdade, não me lembro de ninguém na Globo que o faça. O velho sabe para que serve cada botão da câmara e o peso do tripé. Quando um preto sugere um restaurante mais simples, ele não dá atenção porque paga a conta dos colegas que ganham menos no restaurante melhor. Tal como ele fez piada 'idiota de preto', ele faz dele próprio, suas olheiras, velhice etc... Quando íamos para a Índia – eu vivia em Lisboa – fui três dias antes para Londres, de onde partiríamos para Deli. Eu ia ficar em um hotel, mas o ‘racista’ que havia trabalhado comigo até então somente uma vez em Cannes convidou-me para ficar na sua casa, onde vivia com sua esposa e dois filhos, esposa essa a quem ‘preconceituosamente’ chamava de ‘flaca’, devido sua magreza. Eu via como uma forma de carinho. Comemos, bebemos bom vinho e, em nenhum momento alguém quis se mostrar mais erudito que eu, nem mais racista.”
Já o ator de telenovelas brasileiras da mesma emissora, Lázaro Ramos, decretou: é racista e ponto final. Assim, definitivo. Não o conhece pessoalmente, mas já definiu e pronto, já está. Lázaro é um ativista e um defensor de ações que se destinem a revelar o racista que exista escondido em qualquer pessoa, especialmente naquelas que geram barulho. Está no seu direito, claro. Preto, casado com uma preta, tendo filhos pretos, possui autoridade para falar sobre racismo e atitudes preconceituosas. A sua mulher, a atriz Taís Araújo, afirmou recentemente que o Brasil é um país onde as pessoas mudam de passeio quando vêem o seu filho. Face a este relato, parece mesmo um país à beira do abismo. No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro onde vive a família, ser preto é aviltante. Ser branco, diante desse relato, um nojo.
A família de Lázaro Ramos e Taís Araújo está na lista dos afrodescendentes mais influentes do mundo abaixo dos 40 anos. Receberam uma distinção em Nova Iorque ao lado de figuras como Beyoncé, Tiger Woods e Lewis Hamilton. Ao voltar ao Brasil, Taís afirmou:
“Recentemente, eu e Lázaro fomos a Nova Iorque para receber um prémio muito especial, o Mipad, que tem apoio da ONU e distinguiu os 100 jovens negros mais influentes do mundo. Esse reconhecimento nos deu orgulho. Ao mesmo tempo, contudo, saí da premiação me sentindo envergonhada. Ao ter contacto com pessoas de países tão distintos como os Estados Unidos, a África do Sul ou o Quénia, ficou claro quanto o Brasil está atrasado na implantação de políticas para resgatar a contribuição da sua população de origem africana.”
Oi? Os Estados Unidos? Madame Ramos não fez a lição de casa. Embora a segregação racial tenha sido oficialmente encerrada há meio século, em inúmeras cidades dos EUA, brancos e pretos não se misturam. Eles nem trocam de passeio porque em muitas cidades não vivem nos mesmos bairros. Não frequentam os mesmos lugares, as mesmas escolas, os mesmos bares e restaurantes, nem dividem o mesmo banco da igreja. Na verdade, frequentam igrejas diferentes. Até para comprar, ou mesmo arrendar um imóvel, há diferenças de tratamento em instituições bancárias. Um levantamento oficial americano do Instituto Brookings, afirma que o índice de segregação apesar de ser hoje menor, se mantém elevado e perigoso. Segundo este levantamento, a maioria das cidades americanas tem níveis de segregação entre 50 e 70, numa escala de 0 a 100, onde zero é a integração perfeita. Segundo o estudo, se uma pessoa é negra naquele país, aumenta a possibilidade de viver numa área de pobreza e dificilmente sairá de lá.
Pessoas com exposição nos media, como o casal de atores, sentem-se com autoridade para definir o certo e o errado. Acreditam até que podem definir como a sociedade deve reagir diante disso ou daquilo, ou quem devemos decretar como racista. Ou, ainda, quem destruir seu passado desde que não seja aquele que nos pague um bom salário.
Na novela William Waack, Lázaro Ramos não deixou de jogar para os adeptos:
“Coisa de Preto é a bruxaria contida num conto de Machado de Assis. Um samba escrito pela caneta de Mauro Diniz. Coisa de preto é a poesia de Cartola. Os dedos a bailar sobre o violão de Paulinho da Viola. Ah, só podia ser preto – Romário, Imperador, Ronaldinho... E eu completo aqui: é tudo isso e muito mais. E pra você, o que é? E só pra não esquecer: racismo é crime e ponto final.”
Ponto final para um bom entendedor é como um martelo batido pelo juiz. Não se discute mais. O ator decreta que William Waack é racista - e ponto final. Quanta autoridade. Ele faz parte dessa nova geração de atores da Rede Globo que ganhou espaço nos media da própria emissora com os seus posicionamentos “politicamente corretos” e faz pose de intelectual ao dividir espaço nas revistas femininas com participantes de reality shows como o Big Brother - o nível do Brasil de hoje é esse. Uma figura como ele, que é realmente um ótimo actor, carismático, preto e baiano, é tudo o que a Globo precisa para fazer o seu banho de pureza por tudo-aquilo-que-não-queremos-ser-lembrados.
Pouquíssimos atores pretos figuram com destaque no elenco das novelas ao lado do casal Ramos, ambos muito talentosos. Jornalistas pretos que sejam âncoras nos telejornais da emissora? Conta-se nos dedos de uma mão. Protagonistas de telenovelas pretos? Até há muito pouco tempo, o lugar de preto em novela da Globo era na cozinha, na faxina, no volante do autocarro, atrás de balcão de bar, na favela. Teve um ou outro com destaque, mas são pouquíssimos diante do portfólio de obras exportáveis da emissora. Mas a Globo mudou. De há uns anos para cá vem dando espaço, muito pequeno ainda, mas enorme diante do que havia, para profissionais pretos cuja imagem apresente os principais produtos da emissora e o novo posicionamento. O que isso significa? Que a Globo era preconceituosa, racista e hoje não é mais? Será que Lázaro pensa assim? Quando um preto como Lázaro fala algo sobre preconceito, devemos ouvir e levar em consideração o que foi dito - e isso vale para o judeu, o anão, o gay e o alentejano. Só é estranho não ouvir Lázaro criticar a Globo por oferecer tão pouco espaço aos pretos. Mesmo assim, a empresa parece estar curada do racismo que o próprio ator acusa seu colega de empresa, como um traço indissociável de sua personalidade. A Globo teve cura, porque paga o salário do talentoso casal preto, ou o salário é bom o suficiente para se cobrir as cáries da emissora e fingir que nunca estiveram ali? O problema está naquilo-tudo-que-eu-não-gosto-de-ouvir.
O casal só foi citado neste artigo por serem duas figurinhas repetidas na media trash, por trabalharem na mesma empresa, e por Lázaro ter se manifestado como se esperava que ele se manifestaria. Ele não surpreendeu. De onde menos se espera, é de lá que não vem nada mesmo.
Um dos melhores e mais lúcidos textos do Brasil, José Roberto Guzzo, jornalista que transformou, ao lado do seu amigo e patrão, Roberto Civita, a revista Veja na maior publicação da América Latina, e uma das maiores e melhores do mundo, escreveu: “William não foi demitido do seu cargo por ser racista, pois ele não é racista. Em seus 21 anos de trabalho na Globo nunca disse uma palavra ofensiva a qualquer raça. Também nunca escreveu nada parecido em nenhum dos veículos de imprensa em que trabalha há mais de 40 anos. Nunca fez um comentário racista em nenhuma de suas palestras. O público, em suma, jamais foi influenciado por absolutamente nada do que ele disse ou escreveu durante toda a sua carreira profissional.” Para Guzzo, um dos motivos da demissão de Waack é a distância abissal entre sua competência e a de seus chefes e colegas. “No bioma que prevalece hoje na Globo e na media em geral, é infração gravíssima. A punição tem tudo para se tornar um clássico em matéria de hipocrisia, oportunismo e conduta histérica.”
Estamos a viver momentos complicados e preocupantes em relação ao que dizemos e a como vão interpretar as nossas palavras. Se eu disser a uma criança que um bebé nasce com o sexo feminino ou masculino, estarei, para algumas pessoas, a dizer uma incorreção senão uma aberração. Profanando o direito daquele ser se poder identificar com o seu autêntico género. Se eu fizer uma piada de papagaio, a sociedade protetora dos animais poderá vir questionar a minha atitude preconceituosa para com aquela ave. Em breve não haverá mais adeptos nos estádios. Como, Deus!, 20 mil pessoas podem se juntar para torcer pelo sucesso de uma equipa e desejar o fracasso do outro?
Em breve teremos medo de pensar. Alguém com poderes paranormais – e eles estão por toda parte, sobretudo na internet – pode ler os meus pensamentos e, numa escorregadela posso me lembrar de alguma piada. Teremos medo de falar. Antes de abrir a boca iremos construir a frase avaliando todas as variáveis que dela possam ser construídas pelas mentes brilhantes dos sem-neurónios.
William Waack errou. Pediu desculpas e pronto. Por mais estúpida que tenha sido a frase, levante a mão quem nunca na vida cometeu um erro tolo. Daí a defini-lo racista e a condená-lo ao extermínio social para satisfazer os olhares raivosos da turma do politicamente correto, vai uma distância infinita.
Arrisco dizer que a atitude de Lázaro namora com as suas próprias acusações. Mas prefiro acreditar que não, ele é muito correto para isso. Está acima do bem e do mal.
“O que William pensa ou não pensa, na sua vida pessoal, não é da conta dos seus empregadores, ou dos colegas, ou dos artistas que assinam manifestos. O princípio é esse. Não há outro. Ponto final”, finaliza José Roberto Guzzo. E isso serve para você, para mim, para todos nós. O que você diz e pensa na sua vida privada é apenas, e exclusivamente, da sua conta.
E ponto final.
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