1. Larissa Sousa vem de calças de capulana, o tecido-mor de Moçambique, e uma blusa onde se lê: “Josina Machel” (protagonista da luta de libertação, mulher do primeiro presidente, hoje nome de muitas escolas). Larissa, 27 anos, nascida a duas horas daqui, estudou gestão na Finlândia, fez um MBA no Zimbabwe, e agora mora no meio do mato, aqui mesmo, no Parque Nacional da Gorongosa. Porque é que ela quem coordena o programa Clube de Raparigas nas comunidades em volta do parque.
“Já temos 50 clubes, com 40 raparigas cada”, diz Larissa. Portanto, 2000 raparigas envolvidas. Cada clube tem dois promotores, que são pessoas das comunidades treinadas pelo programa, nunca da própria comunidade com que trabalham, para garantir independência. As raparigas têm entre 10 e 16 anos e frequentam o clube todos os dias, por duas horas. “Se têm escola de manhã, vão ao clube à tarde, das 14h às 16h. Se têm escola à tarde, vão de manhã, das 8h às 10h. O nosso objectivo é reter a rapariga na escola, e assim ajudamos a evitar casamentos prematuros. Seleccionamos as mais vulneráveis, com pais que já morreram, ou estão doentes, as que já são responsáveis pelos irmãos. Temos também crianças que são orfãs, com pais alcoólicos ou com HIV.”
O HIV não só é comum como está a aumentar. “Por causa da poligamia, da falta de informação.” Da tradição: os homens recusam-se a usar preservativo. “Muitas destas comunidades são isoladas e vivem como os ancestrais, ‘eu tenho que ter cinco mulheres, vinte filhos’... A promiscuidade é grande. Depois alguns arranjam emprego fora, trazem infecções de lá. Normalmente, os homens são os que mais contaminam as mulheres. E não vão aos hospitais, não se tratam, então morrem. O que já não é muito comum, morrer de HIV nas cidades. É que nem se chega a diagnosticar. Morrem de tuberculoses, de cólera, doenças oportunistas.”
Começámos a falar de Clubes de Raparigas e estamos a falar de saúde pública. Está tudo ligado. Quando eu conhecer estas meninas vou ver como aos 11 aos 12 podem ter corpo de sete ou oito, por não comerem bem. Por estarem subnutridas desde que nascem.

2. A manhã em que conheço Larissa é a minha primeira no Parque Nacional da Gorongosa, a convite de quem vim, num programa organizado pelo Instituto Camões. A Gorongosa é uma vasta área traumatizada pela guerra, onde pessoas e animais viram e viveram de tudo. Muitos animais foram comidos porque não havia o que comer. Os elefantes, que não esquecem, trazem essas marcas até hoje, vêem, ouvem em cada carro uma possível ameaça. No começo dos anos 2000, um filantropo americano, Greg Carr, apaixonou-se pela Gorongosa. Fez um acordo com o governo moçambicano, que acaba de ser prolongado por mais 25 anos. A visão de Greg ia muito além da conservação ambiental: pesquisa, educação científica, desenvolvimento comunitário, educação, saúde. Hoje, a Gorongosa é um caso de estudo. Cientistas de Oxford, Princeton ou Coimbra ficam por semanas ou meses. O laboratório do Parque está preparado para poderem fazer recolhas de ADN no local. Botânica, paleontologia, zoologia. Bolsas de estudo, estágios e treinos para milhares de jovens moçambicanos, que assim estão imersos em educação científica e ambiental de ponta. Parti da Gorongosa ao lado de um Joshua pós-doc de Yale, investigador do impacto das cheias aqui na altura das chuvas. A sensação que se tem, desde que aterramos até que levantamos do parque, é que tudo está a mexer em muitas direcções, com uma solidez que não depende financeiramente de ciclos locais. O maior investidor individual continua a ser Greg, mas há também fundos públicos dos EUA, Irlanda, Noruega, Portugal. Greg foi buscar quadros moçambicanos experientes, com parte do seu percurso no estrangeiro, dando-lhes condições para ficarem aqui, como Cláudia Sucá, a responsável por toda a parte de desenvolvimento humano do Parque. Cláudia por sua vez lidera jovens quadros moçambicanos como Larissa.

3. Larissa recebe-me no Centro Comunitário, uma estrutura que o Parque montou entre o Chitengo — onde está a pista de terra batida para as avionetes — e algumas das comunidades. Os escritórios funcionam em contentores, os funcionários partilham casinhas pré-fabricadas, os voluntários ficam em camaratas, há um refeitório. Tudo em pleno mato. Ao fim de semana, quem mora perto o bastante para isso, vai a casa, como Larissa.
Íamos no assunto da saúde pública. “As comunidades com que trabalhamos estão a três ou cinco horas de um posto médico, então fazemos brigadas móveis para levar técnicos, que fazem testes, saúde preventiva.” Para detectar quem precisa de assistência, passar guias de consulta médica. “Mas mesmo com guias muitas pessoas vão a curandeiros que usam seringas e lâminas já usadas. Passam doenças eles mesmos.”
É uma região de língua sena, uma das muitas que se fala em Moçambique. O português é que liga as diferentes regiões, é a língua da escola, e de acesso a muitos trabalhos. O Clube das Raparigas tenta funcionar em português, mas como verei é vital que as promotoras conheçam a língua da comunidade. Até porque não se trata só de comunicar com as meninas. O clube envolve as famílias, toda a gente, para que haja um compromisso de não-abandono escolar. “Os casamentos prematuros também acontecem com rapazes, só que eles não saem da escola quando casam”, explica Larissa. “E as raparigas saem logo, engravidam.”

Dos 100 promotores, mais de dois terços são mulheres, mas também há homens. Todos completaram o 12º ano. A parte de higiene íntima, menstruação, educação sexual é sempre feita por uma promotora mulher. “Os focos do clube são literacia, educação ambiental, direitos da criança, educação sexual e reprodutiva.” Não foi fácil convencer as comunidades em relação a estes últimos campos. “Para eles é um tabu. No início diziam: ‘ah, não, isso vai fazer com que queiram fazer isto e aquilo...’ Se as meninas começam a tomar pílula aos 15 anos são vistas como prostitutas. Fomos fazendo palestras, sensibilizando.”
Estão há dois anos nisto, sempre envolvendo família e comunidade. E sabem que terão de envolver cada vez mais os homens. A família tem de assinar um documento de compromisso. Em cada comunidade, o clube forma um “grupo de madrinhas”, 20 mulheres influentes, que fazem visitas e palestras. Resultados do ano passado, em que trabalharam com 600 raparigas: 21 casaram-se. Este ano, que estão a trabalhar com 2000, Larissa tem indicação até agora de três casamentos, apenas.
São os pais que pressionam as raparigas para casar. Quando há sinais de que uma menina está a ser pressionada, ela pode falar com as madrinhas, depois com a promotora, que por sua vez alerta o centro. Uma rede de apoio. Antes de eu partir, Cláudia Sucá há de contar-me a história recente de uma menina de 12 anos que estava a ser forçada a casar, o parque accionou todas as redes e argumentos, incluindo dizer aos pais que corriam risco de prisão, porque o casamento só é legal a partir dos 18 anos. Até agora ela não casou, mas não pode ser deixada.
Quando as meninas casam, os pais recebem o lobolo, que pode ir de mil a dez mil meticais: entre 15 e 150 euros. “Mais uma caixa de cerveja, de refresco, de uma bebida chamada Tentação, tipo aguardente, algumas capulanas, alguma roupa, cigarros...” Tão pouco como isto. E alguns dizem mesmo: “‘Eu obrigo a minha filha a casar porque quero o lobolo’... Ele é que fez a filha, então ele é que tem o direito.” Se menstruam com 10, 11 anos, isso pode acontecer aos 10, 11 anos. “Há dois meses uma menina apareceu no hospital para um parto. Tinha 11 anos. O bebé morreu.”
Larissa diz que é normal um homem ter duas, três mulheres. Em casas diferentes. Nada a ver com islamismo. O cristianismo animista é a religião dominante aqui.
Quanto a homossexualidade, tabu total. “De certeza que há, mas muito escondido. E na Beira, as trabalhadores do sexo são agredidas, atiram-lhes pedras.”

4. Em volta do parque, no que se chama Zona Tampão, onde estes projectos actuam, há 93 comunidades, num total de 177 mil pessoas. Se agora existem 50 clubes, e 2000 raparigas envolvidas, o objectivo é ir duplicando. Também há gente a viver dentro do parque, ainda, cerca de 1500 famílias, mas estão a ser encorajadas a sair. “Não podem viver aqui, é perigoso”, resume Larissa. Todo um trabalho.
Na Zona Tampão as pessoas viviam da pesca, e vivem da machamba, a agricultura: milho, hortaliça, tomate, repolho, feijão, gergelim. Há três escolas secundárias, mas muitas crianças saem da básica sem saber ler e escrever bem. Por isso literacia e numeracia ocupam uma grande fatia dos Clubes de Raparigas, todas as segundas, quartas e sextas. Às terças, os outros temas rodam. “E quinta-feira é para brincar, saltar à corda, correr, dançar. Porque muitas crianças não sabem que têm direito de brincar, a rapariga é para ir acartar água, lavar o prato, cuidar do irmão, cozinhar.” Agora também estão a treinar futebol, têm jogos. E o parque está a criar uma biblioteca móvel, com 50 livros, sobretudo ilustrados,
Além de que as raparigas se tornam parte da conservação ambiental. “Pensou-se como a mulher pode influenciar a destruição da natureza. Tradicionalmente, é ela quem queima ou corta as árvores para fazer machamba, enquanto o homem ia à caça. Para gerar mudança temos de começar de pequenas.
Ainda não tiveram voluntários, mas aceitam-nos. “Têm é que ficar aqui e trabalhar nas comunidades”, Larissa, apontando o mato.

5. Este dia em que nos encontramos é sexta, então depois de almoço Larissa vai ver a família. Mas Emídio Sumbane, o seu colega da Educação Ambiental, leva-me à comunidade de Mussinhá, ver uma escola onde estão meninas de um dos Clubes de Raparigas. É uma escola pintada de fresco, com cores alegres, animais desenhados nas portas. Os professores abrem as salas, as crianças levantam-se em coro. As meninas que estão no clube juntam-se numa sala, uma delas, muito pequenina, diz um poema que uma promotora escreveu, um poema que começa a falar da Gorongosa, e pelo meio combate os casamentos prematuros, fala nas mulheres que querem ser professoras, doutoras. Um nico de gente a falar de direitos das mulheres em forma de poema. Chama-se Anora. Mas que idade tem, pergunto? Porque parece ter sete, oito anos. Tem 11. Algumas das meninas são mais velhas, 14, 15, e já têm pequenos corpos de mulher, com ancas e peitos. Mas alguns muito pequenos mesmo. Falam um português que mal se consegue ouvir, de tão tímidas. São sérias, quase não sorriem, grandes olhos abertos.
“Se não estivessem no clube, já estavam casadas”, diz a professora, a enérgica Maria da Graça, que puxa por elas de cada vez, sempre que elas falam para dentro. Como o poema menciona o que elas querem ser, pergunto-lhes o que querem ser. Elas levantam-se para responder uma a uma. E as respostas são: fiscal do parque, professora, enfermeira, directora, promotora (várias). Mas também há uma que quer ser cientista de elefante, outra piloto e outra ministra da Educação.

6. O clube funciona não na escola mas na própria comunidade, em volta de uma árvore. Uma das meninas, Isabel, 14 anos, tamanho e sorriso de 10, leva-me lá. Vamos por uma picada, altos e baixos, pequenas casinhas de terra e colmo no telhado. Até que, ao cimo, lá está a árvore, e a promotora Júlia a trabalhar literacia com duas meninas. As meninas estão sentadas num tronco, e Júlia tem uma ardósia debaixo da árvore, onde vai apontando as letras. É da vila da Gorongosa mesmo, fez o 12º, depois três anos de formação agrícola, mas não achou trabalho, então fez a formação para o Clube das Raparigas e foi colocada aqui. Conta tudo isto com o mesmo sorriso com que anima as meninas a ler as sílabas, falar “com voz alta”. Foi ela mesma quem escreveu o poema que ouvi. “Houve uma menina que casou este ano”, conta, antes de retoma a ardósia, as sílabas, debaixo da árvore. “Quando fomos de férias, em Dezembro, o pai aproveitou. Ela tinha 14 anos, e queria voltar ao clube.”
Regressamos à escola com a pequena Isabel. A meio do caminho, ela aponta uma das casinhas de terra, uma mulher que já parece avó, crianças: “É a minha mãe!” Viúva e mãe de seis. Vem com o mais novo ao colo. Sorri sem os dentes da frente. Tem só 42 anos. Diz que quer que a filha estude, sim. “Tem que estudar para me ajudar.”
Então, Isabel, este nico de gente, sorriso solar, já tem uma família inteira nos ombros aos 14 anos. Do facto de ela estudar, a família espera todo um retorno.

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