Como testar um medicamento?

Pois bem: ontem inventei um novo medicamento para as dores nas costas. Como posso saber se de facto tem efeito e ajuda a melhorar as ditas dores?

Encaremos isto como um jogo. E o jogo é este: vamos testar o medicamento da forma mais cruel possível (cruel para o medicamento, entenda-se!). Como? Para sabermos se o nosso medicamento resulta, temos de fazer tudo para provar que não resulta!

É contraintuitivo, mas é assim que a ciência funciona: ataca-se a teoria (neste caso, a teoria é: “o medicamento X funciona”) para ver se a teoria se aguenta à bronca. Neste caso, se o medicamento passar o teste, podemos ficar razoavelmente convencidos de que resulta.

Mas que teste é esse?

Comecemos o jogo. Em primeiro lugar, temos de dar o medicamento a um grupo alargado de pessoas. Casos isolados não nos dizem muito.

Assim, pegamos em mil pessoas com dores nas costas e damos-lhes o nosso medicamento para ver o que acontece. (Enfim, para chegar a esta fase há não sei quantos passos prévios, mas uma crónica é uma crónica...)

Primeiro problema: já sabemos que uma pessoa, quando toma um comprimido, tem tendência para se sentir melhor, mesmo que seja só por saber que tomou o comprimido. Este efeito é conhecido há muito tempo e chama-se efeito placebo.

Para evitar sermos enganados pelo tal efeito, e para garantir que o nosso medicamento tem efeito real, podemos dividir as mil pessoas em dois grupos: metade do grupo toma o medicamento e a outra metade toma um comprimido falso, sem medicamento. Para que o teste funcione bem, os participantes não podem saber se estão ou não a tomar o medicamento. É desta maneira que conseguimos fintar o efeito placebo.

Mas, antes disso, convém admitir: se fôssemos nós a escolher quem toma o medicamento e quem toma o comprimido falso, talvez empurrássemos os doentes com menos dores nas costas para o nosso medicamento — seria mais fácil detectar um efeito nesses... Para evitar tal manigância, os ensaios bem feitos dividem os doentes em dois grupos de forma aleatória.

Ocultar para revelar

Mas há mais: se uma pessoa participa num ensaio destes e recebe o comprimido, pode receber pistas subtis de que está a receber o medicamento real. Basta um piscar de olhos, uma hesitação, uma certa inflexão da voz — ou mesmo declarações menos disfarçadas (“não se preocupe, sei que está no grupo certo!”). Estas pistas subtis são o suficiente para que o efeito placebo actue. Para evitar esse efeito falso, quem contacta com os doentes não pode saber quem recebe o quê.

Quinhentos doentes escolhidos ao acaso tomam um medicamento; quinhentos doentes escolhidos ao acaso tomam um comprimido falso. Ninguém sabe quem é quem (a verdade está escondida num envelope até ao final do jogo). A única coisa que distingue os dois grupos é o medicamento, que fica assim exposto à luz intensa dum exame rigoroso.

Se o primeiro grupo ficar com menos dores nas costas em comparação com o segundo e a diferença for significativa, chegamos à conclusão (sempre provisória) de que o medicamento tem efeito.

Este tipo de ensaios clínicos tem o nome técnico (em inglês) de “randomized, double-blind, placebo-controlled trial”, ou seja, um ensaio clínico aleatorizado em dupla ocultação e controlado por placebo — uma série de palavrões que descreve o que acabei de dizer. O ensaio será então publicado numa revista científica, com revisão pelos pares, o que significa que outros cientistas tentarão encontrar falhas na experiência. Se nada houver em contrário, é então publicado.

Sorte e azar

Mesmo com ensaios deste tipo, não há certezas com uma só experiência: pode ter sido apenas sorte. Se o medicamento tem efeito, esse efeito será detectado numa grande parte dos testes (mas não em todos); se não tiver efeito real, haverá um ou outro teste em que parece haver um efeito fantasma, mas a grande maioria dos testes revelará a ineficácia da dita poção... Só com a repetição do ensaio podemos saber se o efeito é real. Por outro lado, o número de participantes é muito importante: um ensaio feito com dez participantes está muito mais sujeito à sorte e ao azar do que um ensaio com mil participantes.

Depois, há ainda que ter em conta os efeitos secundários e, por fim, comparar com o efeito de medicamentos semelhantes. É difícil, mas tem de ser — e ainda é mais difícil do que descrevi, pois tive de simplificar...

Estes testes não são caprichos. Foram estratégias inventadas para distinguir o que funciona daquilo que parece funcionar ou que gostaríamos que funcionasse. A ciência contraria a nossa natural parcialidade (“o meu medicamento é muito bom!”) para chegar a resultados minimamente objectivos. É importante perceber o mecanismo, um mecanismo que muitos recusam precisamente por ser difícil e por, de vez em quando, contrariar as nossas impressões imediatas (“comigo resultou, quero lá saber dos números!”).

Ciência e arte

Os ensaios clínicos são apenas um dos muitos métodos usados pelos cientistas, que variam de disciplina para disciplina e vão sendo afinados ao longo do tempo. Um físico não usa ensaios clínicos, mas também tenta encontrar formas de testar, mais tarde ou mais cedo, as suas teorias. Será que as previsões acertam? Será que encontro alguma coisa que prove que estou errado? Será que há uma explicação mais simples para os fenómenos que estou a observar? Ter ideias valentes e, depois, tentar contrariá-las para ver se se aguentam: é este o cerne de muito do que se faz em ciência.

Ora, da luz das estrelas distantes que chega aos nossos olhos milhões de anos depois ao comportamento peculiar das partículas subatómicas, passando pelos mecanismos que explicam a diversidade de espécies na Terra, aquilo que a ciência descobre quando levanta o véu da superfície das coisas deixa-me com um arrepio na pele — também chamado espanto.


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens no blogue Certas Palavras. Contou histórias de Portugal em A Baleia que Engoliu Um Espanhol.