As histórias são perigosas
Os números são perigosos — já todos sabemos. É fácil enganar com estatísticas e com indicadores atirados às nossas caras sem pudor. Mas, na verdade, se queremos mentir bem, o que devemos fazer é ignorar os números: basta inventar uma história e procurar um ou outro caso que a confirme.
Com um ou outro caso na manga, conseguimos justificar todos os disparates e mais alguns. Se ignorarmos os casos contrários e mostrarmos apenas os que nos convêm, conseguimos provar que o meu clube está a ser prejudicado, os carros automáticos são
perigosíssimos, as mulheres não sabem conduzir, os homens ainda menos, os portugueses são o povo mais antipático do mundo (ouvi esta ontem), os portugueses são o povo mais simpático do mundo (ouvi esta anteontem — e não estou a mentir!), aquele remédio que inventei a semana passada funciona mesmo bem, Lisboa está cada vez mais bonita, o Porto é uma cidade suja, Lisboa está cada vez mais feia, o Porto é a cidade mais limpa do país...
O que preciso é de inventar uma história, dividir o mundo de alguma maneira e defender com unhas e dentes o meu lado — os números não interessam. Os números são coisa de gente fria, os números enganam, os números não sofrem.
Carros sem condutor e árbitros tendenciosos
E não sofrem, de facto — mas as pessoas sim. E, se ignorarmos os números e nos deixarmos embalar por mentiras sem pensar duas vezes, acabamos por aceitar remédios que não fazem nada, teorias que nos prejudicam, medos infundados... Ou, para voltarmos à pobre empresa de Elvas, podemos ser muito injustos com alguma pessoa bem real (neste caso, o pobre responsável pelos recursos humanos da tal empresa).
Se estamos interessados em perceber um pouco melhor o mundo, convém ouvir histórias a favor e contra as nossas hipóteses. As histórias pessoais são interessantes e, quase sempre, importantes — é da soma de muitas histórias que se faz a realidade. No entanto, o que muitas vezes fazemos é ignorar as histórias que não nos interessam. Quase nunca fazemos isto por mal: é assim a nossa natureza.
Por exemplo, quando pensamos nos carros autónomos que, em breve, estarão nas nossas estradas, temos uma natural tendência para desconfiar das capacidades dessas máquinas para conduzir — uma tarefa que sabemos ser bastante complexa. Ora, se desconfio dessas máquinas, ao primeiro acidente com um destes carros vejo as minhas suspeitas mais do que confirmadas. Não me dou ao trabalho de pensar nas histórias de todos os que morrem diariamente às mãos dos condutores humanos nem de comparar estatísticas e ver os números de acidentes por quilómetro.
Outro exemplo, mais habitual: se tenho na cabeça que o meu clube está a ser prejudicado pelas arbitragens, é óbvio que ignoro todos os casos em que não é prejudicado ou em que a arbitragem prejudica os rivais. Mais um exemplo: se acredito piamente na eficácia de um certo medicamento para combater a constipação, não vou pensar em todas as vezes que me curei sem o medicamento nem nas vezes em que o medicamento não serviu para nada...
Histórias, tribos e a minha razão
Há soluções? Até há — mas a nossa natureza não é muito amiga dessas soluções. É por isso que achamos a ciência fria; é por isso que desconfiamos de quem gosta de ouvir os dois lados da questão; é por isso que insultamos os números, como se os números não fossem uma invenção tão humana como as outras — e mais útil do que a maioria. Gostamos de histórias, gostamos de tribos, gostamos de ter razão sem olhar a meios. Esta é a nossa natureza. Gostamos de contar e ouvir histórias — e ainda bem. Mas quando queremos analisar o mundo, temos de contar, comparar, testar o que dizemos. Isto, claro, se aquilo que queremos é chegar a algum tipo de verdade. Se é certo que a verdade inteira é inalcançável, também me parece claro que esta frase-feita serve, muitas vezes, de desculpa para quem nem sequer tem vontade de se aproximar dos factos.
Voltemos à empresa alentejana que contratou 9 espanhóis e 1 português. Não parece haver desculpa para esta discriminação — isto, claro, até sabermos que os candidatos eram estes: 20 espanhóis e... 1 português! Ou seja, a empresa contratou todos os portugueses que se candidataram e menos de metade dos candidatos espanhóis...
O problema são os números? Neste caso, o problema é a nossa compreensão parcial dos números. Mas a solução não é ignorá-los:
é procurar mais números, números que contem a história de forma mais completa. Até porque, se concorreram 20 espanhóis e apenas 1 português, há um problema — mas não é o que parece à primeira vista.
O nosso problema é este: queremos ser enganados por esta história — temos as duas tribos aqui da zona (portugueses e
espanhóis), temos números que parecem provar um ataque à nossa tribo, temos uma empresa que faz as vezes de vilão... É difícil lutar contra uma história tão apetitosa — e, nestes tempos de fúrias vertiginosas, poucos se dão ao trabalho de desconfiar dos seus próprios apetites mentais.
(O problema não é de agora, claro está. Aliás, a história da pobre empresa de Elvas foi adaptada de um exemplo que encontrei no livro Irrationality, de Stuart Sutherland, um livro publicado em 1992 e que contava a mesma história sem referir nem Elvas, nem portugueses, nem sequer espanhóis. Fica a sugestão de leitura.)
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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