Todos participam, por ação ou omissão (partidos, opinion makers, comunicação social entre outros, incluindo académicos) nesta grande mistificação a que chamámos falácia.
O termo falácia deriva do latim e significa enganar. Designa-se por falácia um raciocínio errado com aparência de verdadeiro. Na retórica política, uma falácia é um argumento logicamente incoerente, sem fundamento ou inválido na tentativa de provar o que alega. Reconhecer falácias é difícil. A etimologia é muito útil para compreender a realidade económica e das finanças públicas nos países desenvolvidos da OCDE e, do mesmo modo, de Portugal.
A OCDE define integridade “Integrity is one of the pillars of political, economic ans social structures, and a cornerstone of good governance.” Ou seja, sem integridade pública não há boa governação. Está em causa o fracasso da política e da democracia, porque persiste um défice generalizado de integridade pública, que tem por base défice de valores e princípios, de competência e de humildade.
“As regras orçamentais baseadas no défice e na dívida, pouco fazem para descrever o problema e menos ainda para o gerir. Compreender o verdadeiro estado das finanças públicas requer um balanço completo, orientado pela contabilidade de acréscimo. Isto, por sua vez, abrirá oportunidades para uma melhor gestão de ativos e passivos, o que contribuirá para enfrentar os desafios enfrentados pelos países envelhecidos da OCDE e pelas suas finanças públicas sobrecarregadas.
Para as economias de mercado menos desenvolvidas, a mensagem principal é que, quanto mais cedo for adotada uma abordagem centrada no património líquido e no balanço para a gestão das finanças públicas, menor será a probabilidade de repetirem alguns dos erros das economias mais desenvolvidas.” (1)
Todos ou quase todos aceitam uma “verdade” que se baseia numa mistificação. Não temos contas certas (apesar de um superavit em 2019 e em 2023) pela simples razão de que não temos contas completas, devido à inexistência de consolidação de contas no Sector Público. E porquê? Os governos de António Costa não quiseram, erradamente, aproveitar uma das melhores reformas que o governo anterior concebeu – da gestão financeira pública, com suporte legal na Lei do Enquadramento Orçamental (LEO) e no Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas (SNC-AP), introduzindo-se as normas internacionais de contabilidade pública (as IPSAS), as quais permitem uma visão mais fidedigna e abrangente das finanças públicas. Foi uma boa reforma que gerou um consenso alargado, embora não fosse perfeita, como nunca são. Esta asserção seria a mesma caso o governo autor desta reforma fosse do PSD ou do PS. Tivesse esta reforma sido cabalmente implementada e hoje estaríamos em condições de falar de “contas certas” com seriedade e rigor. Mas Mário Centeno, preferiu preservar (mal) o status quo. Como refere o Tribunal de Contas (TC) no seu exame a esta reforma, o governo adiou indevida e sistematicamente a sua implementação. Sem o balanço do Estado, devidamente consolidado, evidenciando com rigor o ativo global e o passivo global não estamos a ser rigorosos e a falar verdade aos portugueses. Não é um mero exercício contabilístico. É rigor. É um instrumento de gestão e boa prestação de contas, que constitui um dos atos mais nobres e dignos de qualquer responsável político ou gestor, em especial no caso da gestão pública, em que estão em causa os recursos públicos.
Porque o povo português precisa e merece a verdade, para fazer boas escolhas. Todavia, em matéria de “contas certas” tem sido massacrado com demagogia, ilusões e distorção da realidade, permitida pelas insuficiências do modelo atual de produção das contas públicas, alicerçado num sistema de contabilidade de caixa, que deve ser substituído por um sistema de contabilidade de acréscimo com base nas IPSAS, como previsto na reforma lançada em setembro de 2015. Poderíamos ir mais longe e falar de opacidade. Alguns economistas e jornalistas da área económica têm consciência da realidade, mas preferem “não fazer ondas” admitindo, no entanto, que estas contas certas são um mito. Outros falam no risco de ser revelada a verdade e isso poder gerar desconfiança e perturbar os mercados. Faltar à verdade é que pode ser fator gerador de desconfiança e insegurança nos mercados.
Em rigor não é possível governar bem sem boas contas, assim como não é possível responsabilizar com justiça sem contas verdadeiras e completas. A correta elaboração de contas, sem esconder ou esquecer qualquer informação, é uma necessidade e um dever inerentes à gestão publica, que deve ser pautada de forma cada vez mais exigente, em termos de conteúdo, qualidade técnica, tempestividade, completude, fiabilidade e plurianualidade, deste modo constituindo um fator de confiança. Muitos agentes políticos e técnicos recusam o rigor nas finanças publicas, por ignorância ou má-fé, preferindo ignorar a verdade, que seria proporcionada pela implementação da reforma da gestão financeira pública. E a verdade só pode ser alcançada com contas completas e não com “contas certas”, que, pouco ou nada significam. Alguém está em condições de garantir que todas as despesas e receitas do Estado estão integralmente contabilizadas? Ou melhor ainda, alguém está em condições de garantir a completude das contas com base num balanço do Estado, onde constem todos os seus ativos e passivos?
O foco deve estar no balanço do sector público, porque este representa o quadro mais completo da saúde económico-financeira, a verdadeira radiografia das finanças públicas. Este caminho está por percorrer e sem ele a verdade não está ao nosso alcance, porque a realidade é bem diferente, evidenciando a natureza muito frágil das contas públicas nacionais. Como a história tem mostrado, a generalidade das crises financeiras vividas pelo mundo contemporâneo, assentaram em “arranjos contabilísticos” e não em contas. Um dos corolários da crise financeira global de 2008 foi a identificação de múltiplas deficiências nas práticas contabilísticas e de relato das entidades públicas (e de Portugal, em particular), tendo sido evidente a relevância de um relato económico-financeiro abrangente, fiável e tempestivo no sector público e a necessidade de uma contabilidade de acréscimo harmonizada e comparável, no quadro da União Europeia (EU). Em Portugal, nos últimos anos existiu um processo de negação e de recusa em seguirmos o rumo correto, definido e aprovado em setembro de 2015, com a aprovação do SNC-AP e da nova LEO que, no essencial, estão por implementar.
Outro problema que mina a credibilidade das “contas certas” radica na excitação com que o país político e a comunicação social aguardam pelo apuramento do défice ou excedente da execução orçamental, apurada segundo critérios da pura contabilidade orçamental ou de caixa e, paradoxalmente, ignora o parecer do TC sobre a Conta Geral do Estado (CGE), onde se faz uma radiografia mais correta e completa sobre a verdadeira execução orçamental. Em tempos idos o debate sobre a CGE decorria no Parlamento durante 3 dias, onde toda a receita e despesa e outros compromissos eram escalpelizados - hoje decorre em 30 minutos. Estamos esclarecidos?
Em síntese, podemos afirmar com rigor, que somente com recurso à contabilidade orçamental, ignorando a contabilidade de acréscimo (patrimonial ou financeira), nunca saberemos exatamente o valor do défice do Estado e muito menos o património líquido, um indicador central para a análise da sustentabilidade e resiliência das finanças públicas.
De salientar que o TC tem reportado, com insistência, nos sucessivos relatórios de auditoria à implementação da LEO e do SNC dificuldades e resistências técnicas e políticas na concretização de uma reforma vital para a melhoria da qualidade das contas públicas. A LEO deveria estar em vigor em 2019, depois adiada para 2023 e, por último, para 2026. Como é possível? Incapacidade técnica? Ou evidente falta de vontade política?
Informar e esclarecer os portugueses, de forma pedagógica, é verdadeiro serviço público. Negar-lhes informação rigorosa, que torne o processo de escolha dos portugueses mais informado, na base do rigor e da verdade, é um mau serviço prestado à democracia, qualquer que seja a conjuntura em que nos encontremos.
(1). Estas são algumas das conclusões principais de um livro recentemente editado, Public Net Worth — Accounting, Government and Democracy, de Ian Ball, Willem Buiter, John Crompton, Dag Detter e Jacob Soll.
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