Conversas proibidas em dia de eleições.

Sobre a língua portuguesa e a sua fronteira a norte, há uma pequena curiosidade de que me lembrei numa conversa com a minha mulher, bem mais a sul, entre Ponte de Sor e Lisboa, num início de tarde de domingo de eleições presidenciais — estávamos, aliás, com uma certa pressa para chegar a Lisboa a tempo de votar. Vínhamos a ouvir rádio e as notícias falavam, repetidamente, daquela regra que impede o apelo ao voto em dia de eleições.

Perguntávamo-nos, por essas estradas alentejanas fora, em direcção ao sul (sim, há uma grande parte do Alentejo que fica a norte de Lisboa!): por que razão é preciso impedir a campanha durante o dia das eleições? Pois estávamos a falar destas regras estranhas e lembrei-me de que, em Espanha, há um jornal que contornou todas estas proibições de forma peculiar.

Como o El Periódico de Catalunya tem uma edição andorrana (El Periòdic d’Andorra), nesses dias de defeso eleitoral, as suas edições espanholas apresentam uma ligação em letras garrafais para a edição andorrana. Os leitores seguem a ligação e, na versão andorrana, têm acesso a todas as sondagens e informações sobre as eleições espanholas, sem qualquer limitação. Porquê? Porque, claro, Andorra é um país independente, que não tem de seguir a lei espanhola. Grande finta a essas estranhas leis.

São as vantagens de ter um micropaís encostado à fronteira. França também beneficia de tais vantagens: não só consegue que o seu mui republicano presidente se inclua na lista dos monarcas do mundo (precisamente por causa de Andorra, que é país virado para os dois lados), como ainda usa o Mónaco para ter uma família real muito sua, mesmo continuando a ser uma impoluta república. República, sim, revistas cor-de-rosa também!

(Aliás, França tem historial nesta mistura estranha entre republicanismo radical e laivos de monarquia a assomar à superfície: afinal, o seu primeiro chefe de Estado com o título exacto de presidente da República foi Luís Napoleão Bonaparte, que foi também, vejam lá isto bem, o último monarca de França. Estranhamente, foi primeiro presidente e só depois imperador. Confusões.)

O pequeno país encavalitado entre Portugal e a Galiza

Pois bem, a conversa lá continuou, já andávamos para os lados de Coruche. E eu lembrei-me: Portugal também teve um desses micropaíses fronteiriços: o Couto Misto. A sua independência na prática durou até 1868 (isto vi agora, que não sei de cor tais pormenores).

Couto Misto
créditos: Wikipedia

Sim, é difícil definir tal território como país, mas o certo é que se governava a si próprio e não fazia parte nem de Portugal nem de Espanha.

São curiosidades da História e dessa fronteira que é das mais antigas da Europa, mas não deixou de ter ali uma ou outra correcção nos últimos séculos…

Diga-se, de passagem, que o Couto Misto perdeu a sua autonomia num século em que ainda era possível haver territórios onde o conceito de «país» não tinha assim tanta importância. Logo a seguir, veio o século XX, com a sua fúria de fronteiras.

Mas que língua se falaria por lá?

A pergunta mais interessante de todas e que nunca me tinha ocorrido foi a minha mulher que ma fez, nessa viagem até Lisboa: mas afinal que língua se falava nesse Couto Misto? Eu, sempre virado para essas coisas da língua, nunca tinha pensado nisso. Mas é, claro, a primeira pergunta que qualquer português faria, perante esta informação desconcertante de que havia um pequeno país na nossa fronteira — um pequeno país entre Portugal e Espanha ou bem que fala português ou bem que fala espanhol, certo?

Na realidade, até ao século XIX, não seria difícil encontrar gente que falava apenas e só galego nas aldeias da Galiza. Nas aldeias portuguesas ali encostadas à fronteira, seria quase impossível encontrar quem falasse português-padrão. Já nesse tal Couto Misto, tão estranho seria o cobrador de impostos que lá aparecesse a falar espanhol madrileno como aquele que aparecesse a falar português de Lisboa (ou mesmo do Porto). Provavelmente, não aparecia nem um nem outro, pois se há vantagem em não ser nem espanhol nem português, a principal será essa: não pagar impostos.

Voltando à língua. Aposto que, por esses recantos entre Minho e Trás-os-Montes, dum lado e do outro da fronteira — e ainda mais nesse Couto Misto —, a população falaria mais ou menos a mesma coisa. Dum lado, todos diriam falar português, do outro, diriam galego — mas a língua seria, mesmo bem entrado o século XIX, mais ou menos a mesma.

O que diriam no Couto Misto (que não era nem num lado nem noutro), não sei: mas o que falavam seria esse galego-português, língua sem fronteira que se visse — ou melhor, que se ouvisse.

Também aposto que um português de hoje, transportado num qualquer DeLorean para essas aldeias oitocentistas, juraria a pés juntos que era galego a língua que ouvia dos habitantes do tal micropaís — mas o mesmo diria de muitas aldeias portuguesas ali encostadas à fronteira.

No que toca à geografia social, estávamos longe do Porto, das escolas, das universidades, dos jornais… Ainda mais longe estávamos de Lisboa, claro está. E estávamos ainda mais longe do país de agora, que vai quase todo à escola, que ouve rádio e vê televisão.

Falamos de aldeias perdidas em serranias distantes, encavalitadas em fronteiras a que se dava bem menos importância do que hoje. Estamos a falar do século XIX — e por esse século em que se escreviam algumas das grandes obras literárias do português, ainda havia gente que podia falar uma língua sem saber bem se era galego ou português.

Ora, ainda hoje, se lá formos ao antigo Couto Misto, ficaremos surpreendidos com a proximidade do que ouvimos por essas terras agora indubitavelmente galegas com a língua do lado de cá da fronteira.

Mas sobre essa viagem — que fiz há poucos dias — falarei para a semana...

(Crónica baseada em capítulo do livro Doze Segredos da Língua Portuguesa, publicado em 2016, com um final adaptado.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.