Muito se tem falado em cancel culture. É um dos chavões destes tempos em que vivemos, nos quais o linchamento cibernético é praticamente constante e não parece cessar. Mas será que existe mesmo?

Bem, antes de lá chegarmos, é preciso perceber esta estrutura, relativamente recente, em que nos relacionamos uns com os outros designada de redes sociais. Trata-se de um antro de pessoas que pinta a falsa ideia de que nos conhecemos perfeitamente, de que somos íntimos e, pior, de que a opinião de todos interessa. Repare-se que não digo que não devamos todos ter direito à nossa opinião, mas daí a ela ser relevante é que pode ir uma grande distância.

Sempre me disseram que se não tens nada de interessante para dizer, fica calado. Pois bem, tal como o nosso traseiro ou os nossos gostos, cada qual tem os seus, por isso, todos temos o direito a proferir o nosso parecer sobre tudo e sobre nada na esperança de que agrade a alguém. E o mais provável é alguém gostar mesmo, o que nos dá uma sensação de empoderamento e de importância para os quais o nosso ego pode não estar preparado.

No fundo, somos alguém, temos voz. O que, per si, não tem mal nenhum e até pode ser positivo se tivermos em conta que torna a opinião mais democrática. Mas, a meu ver, com todos os direitos deve haver, obrigatoriamente, mais responsabilidade. Devemos fundamentar as nossas apreciações, alicerçar as nossas críticas e reflectir os nossos juízos.

E é aqui, no reflectir os nossos juízos, que podemos começar a debater o que é isto da cultura do cancelamento, se existe mesmo, se efectivamente “cancela” alguém na vida real, fora do Twitter e afins, se não lhe damos demasiado destaque. São tudo dúvidas que me foram aparecendo, quando me debrucei sobre o assunto.

Com o aparecimento da Internet, mais precisamente das redes sociais, surgiu também uma nova maneira de promover profissões com exposição pública. Apareceram, mesmo, novas profissões que vivem, única e exclusivamente, das redes sociais e da percepção que o público tem de quem as executa. Parece-me que o problema pode estar justamente aqui. Todos os ofícios com uma vida “mais pública” sempre tiveram propensão para criar “escândalos”, mesmo antes do Instagram ou do Facebook, e é claro que essas celeumas mediáticas tinham/têm influência na respectiva carreira. Não é novidade.

Quando o core da nossa ocupação profissional é algo tão frágil como o baralho de cartas das redes sociais, acho que temos rapidamente de repensar a nossa profissão e de ponderar se a queremos assim tão dependente do que os comentários alheios proferem acerca de nós. E atenção, todo o trabalho que vive de ter público, vive automaticamente da aprovação do mesmo até certo ponto, mas não pode ser sustentado apenas por isso. O que deve prevalecer é a obra do profissional em questão (seja ela no âmbito da literatura, da música, do cinema ou da pintura) e não o que possam achar da pessoa em si. Quando deixamos que a nossa vida dependa tão-somente daquilo que os outros (que não nos conhecem pessoalmente) acham da nossa pessoa e não da nossa obra, a cancel culture acontece.

Sejamos realistas, a cancel culture é como o bullying. Quando é num exagero constante de milhares contra um, é condenável e repudiante. Mas quando é esporádico e relativo a um assunto concreto que uma ou mais pessoas protagonizaram, por mais agressivas que sejam as palavras e enquanto forem só palavras, também temos de ter "arcaboiço" para levar com elas e para perceber se se extrapolam da Internet para a vida real.

No fundo, a cancel culture são as pessoas a usar a sua liberdade de expressão e o seu direito à indignação (possivelmente descabida) sem razão de ser e, por vezes, com uma agressividade que nos pode ferir. Claro que haverá quem perca o emprego com a avalanche de revolta que recebe, mas será assim tanta gente? Seria preferível proibir as pessoas de demonstrarem essa revolta? Qual seria o critério?

Mais uma vez, mesmo sabendo que é sempre um cheque em branco, terá de ser o bom senso de cada um e a capacidade de nos pormos na pele do outro a ditar a nossa conduta, porque, afinal, “quem nunca errou que atire a primeira pedra.”