O princípio de que o poder legítimo vem do povo, através do voto (mais ou menos) universal, tem apenas 250 anos, mas tornou-se de tal maneira consensual que até as ditaduras mais totalitárias sentem a necessidade de se afirmar com pseudo-eleições. E, até nas democracias consideradas mais perfeitas, regras subtis e manipulações diversas levam a pôr em questão a tal universalidade.

O famosoÍndice de democraticidadeda revista “The Economist” calculou que mais de um terço da população mundial vive debaixo de um regime autoritário e apenas 6,7% goza de uma “democracia plena”.

O índice, medido em 167 países, baseia-se em cinco vertentes: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do Estado, participação política, cultura democrática e liberdades civis. É bastante exigente: a maioria dos países que consideramos “boas” democracias não atinge a nota máxima e são consideradas “imperfeitas” — inclusive Portugal, Espanha, França e Itália. Também os Estados Unidos e o Brasil, mas isso já nós sabemos.

Tudo isto para levar em consideração nos comentários que se seguem sobre as eleições deste ano. Escolhemos algumas que já aconteceram - Mexico, África do Sul, Índia, Taiwan, Indonésia, EU, Bélgica - e três que ainda vão acontecer - França, Reino Unido e Estados Unidos.

No México, as eleições foram em 29 de Maio (resultados a 2 de Junho) e a engenheira Claudia Sheinbaum, do partido de López-Obrador, Morena, que já estava no poder desde 2018, ganhou com 59,76% dos votos.

O processo eleitoral é simultâneo para a presidência, as duas câmaras legislativas e autarquias. Se descontarmos o facto de 31 candidatos locais terem sido assassinados durante a campanha, decorreu normalmente. O país é uma das mais antigas democracias da América Latina. A candidata centrista Xóchitl Gálvez obteve 11 %, e Jorge Álvarez Máynez, da coligação de esquerda, 10,58% dos votos.

O mais notável é ser a primeira vez que uma mulher se torna presidente (por seis anos, não renováveis) num país conhecido pelo seu machismo. Fora esta novidade, é provável que não mude muito a política do presidente cessante, uma mistura de pragmatismo, incompetência e meias-medidas.

A economia mexicana depende da norte-americana, tanto legalmente (muitas indústrias são americanas ou laboram exclusivamente para o mercado norte-americano), como ilegalmente (drogas).

Há também milhares de  mexicanos que atravessam diariamente a fronteira para trabalhar. Obrador tentou seguir os interesses do seu parceiro a Norte, especialmente no que toca ao problema bicudo da imigração. As centenas de milhares de emigrantes de toda a América Central e do Sul que apontam para os Estados Unidos têm de passar pelo México e, por acordo entre os dois países, a fronteira está praticamente fechada, embora nada consiga conter o fluxo.

Resumindo, na prática pouco ou nada deve mudar.

Já na África do Sul vai mudar alguma coisa, embora ainda não se saiba o quê. A grande surpresa das eleições de 29 de Maio é que o Congresso Nacional Africano (ANC), o partido de Mandela que está no poder desde 1994, foi rejeitado por 60% dos eleitores.

As razões são evidentes: corrupção, ineficiência, estagnação económica e alto desemprego. Terá então de governar em coligação, o que pode levar à continuação do populismo desbragado, da corrupção e crise económica, ou um certo pragmatismo e esperança de renovação.

Esta sexta-feira, o que há anos se pensava impensável aconteceu. O ANC de Cyril Ramaphosa chegou a um acordo para a governação com o seu maior rival, Aliança Democrática. Na província do Cabo Ocidental (onde fica a Cidade do Cabo) este partido tem conseguido governar razoavelmente, com os serviços públicos a funcionar, estradas navegáveis, poucos cortes de energia e baixo desemprego. O problema é ser um “partido branco”, liderado por John Steenhuisen, que não tem conseguido passar dos 22%, num país negro e com recordações amargas dos tempos do apartheid.

Na Índia as eleições começaram a 19 de Abril e terminaram a 1 de Junho - nada de surpreendente, para um país com 1.500 milhões de habitantes e mais de três milhões de km2, com más comunicações e piores estruturas. O resultado, embora tenha dado uma vitória a Naarenda Modi, foi inesperado.

Modi tem comandado a política indiana desde 2014. Em 2019 ganhou 303 dos 543 deputados no Parlamento, além de 50 de outros partidos coligados com o partido  Bharatiya Janata. Desta vez ficou-se pelos 240 deputados. Mantém o poder, mas é evidente que levou um cartão amarelo. A oposição, ou seja, a coligação denominada INDIA, dirigida pelo Partido Nacional do Congresso de Rahul Gandhi, chegou a um resultado muito próximo, apesar de todos os golpes que Modi usou nas eleições.

Nos últimos dez anos Modi, num estilo autoritário, capturou ou subverteu quase todas as instituições indianas. Criou um mecanismo de doações particulares ao partido, considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal no princípio do ano. Persegue os adversários utilizando o aparelho de Estado, atazanando-os com processos intermináveis, apropria-se das contas bancárias dos partidos oposicionistas e até mandou prender dois ministros desses partidos. Usou a influência do Bharatiya Janata para dividir a oposição e provocar deserções. Transformou os principais meios de comunicação social (impressa e televisiva) em armas de propaganda, beneficiou os que o apoiam e lançou os órgãos de repressão sobre os desafectos. Puxou especialmente pelo nacionalismo hindu contra os 172 milhões de muçulmanos, provocando desacatos e saques nas cidades, bairros e áreas onde eles vivem.

Tudo isto, e perdeu votos. Os comentadores dizem que os indianos mostraram que são a favor da democracia, mas o facto é que Modi vai continuar no poder e a democracia torna-se cada vez mais “iliberal”, para usar o adjectivo cunhado por Viktor Orbán.

Mudou alguma coisa, mas fica tudo na mesma.

Em Taiwan, as eleições decorreram em Janeiro e ganhou o Partido Democrático Progressista, mudando apenas o Presidente; Lai Ching-te é o terceiro do mesmo partido, desde que há eleições democráticas na ilha, em 1996. No entanto, os progressistas perderam 10 deputados no parlamento, enquanto o Kuomitang, de direita, ganhou mais 14. O Partido do Povo, de esquerda, ficou em terceiro lugar. Em Taiwan (a Formosa portuguesa), qualquer eleição, na verdade qualquer actividade política, é feita sempre sobre a espada de Dâmocles da China continental. Todos sabem que a invasão acontecerá um dia, só não sabem quando. E a China reage sempre mal às eleições. Desta vez cercou a ilha com a sua armada, sobrevoou o espaço aéreo e repetiu as habituais ameaças.

Não mudou nada e fica tudo na mesma.

Aqui em Portugal fala-se pouco da Indonésia, mas os destinos deste país são de grande importância mundial. Com cerca de 270 milhões de habitantes, é o quarto mais populoso do mundo e o maior exportador de carvão e de níquel, um componente essencial das baterias.

O presidente cessante, Joko Widodo, é extremamente popular pelos seus programas de bem-estar; apoio escolar, saúde e habitação. Prabono Subianto, o novo presidente, nas eleições anteriores era o  principal opositor, mas desta vez, num volte-face, fez um acordo com Widodo. Este apoiou-o, a troco da promessa de seguir as mesmas políticas e da nomeação do seu filho, Gibran Rakabuming Raka, como vice-presidente.

Prabowo, que foi educado no Reino Unido e na Suíça, e estagiou como militar nos Estados Unidos, sempre enfatizou a importância do país no mundo pós-colonial. Em Novembro, por exemplo, criticou a União Europeia por criar uma legislação ambientalista que vai impedir as exportações da Indonésia para a Europa: “Acho bastante desleal que os europeus, que nos obrigaram a plantar chá, borracha e chocolate, agora se queixem que estamos a destruir as nossas florestas. Quem as destruiu primeiro foram eles.”

O grande projecto de Widodo, a mudança da capital, Jacarta, para uma nova cidade, Nusantara, decerto vai continuar, apesar dos custos brutais.

Também não se espera uma mudança na postura pró-ocidental de Prabowo.

Na Bélgica, as eleições de domingo passado deram mais uma vitória às direitas radicais europeias. O país sempre esteve dividido entre os flamengos e os valões, divisão essa que resultou em situações surreais, como estar sem governo durante 541 dias (em 2010-11). O país nasceu em 1830, com a união de uma parte da Holanda com a Valónia e, apesar de ter uma época de abundância com a exploração brutal do Congo, as duas partes nunca se entenderam. As eleições nacionais, regionais e europeias, são todas no mesmo dia.

Desta vez, a Nova Aliança Flamenga, de direita, foi o vencedor nacional, enquanto outro partido de extrema-direita, dos separatistas flamengos, Vlaams Belang, ficou em segundo lugar.

A N-VA, dirigida por Bart De Weber, recebeu 18.6% dos votos, mais 2% do que em 2020, e o VB 15,4%, uma subida de 3,5% em relação a 2020. Na região da Flandres o N-VA ficou com  24,5%, e na Valónia ganhou o MR, liberal, com 30%, seguido do Partido Socialista, com 22,3% e o centrista Les Engagees, com 21%.

Agora resta esperar que eles se entendam, o que pode levar meses.

Quanto às eleições para o Parlamento Europeu, não se tem falado noutra coisa por estes dias — já tudo foi dito e muito ainda haverá a dizer, e assim me fico pelos essenciais.

Há sete grupos políticos no emiciclo, além dos chamados “não inscritos” e dos “outros”, que não pertencem a nenhum dos grupos. Em termos globais, a extrema-direita não ganhou maioria, nem pouco mais ou menos. Espera-se um re-arranjo destes grupos, sem contudo se prever uma superioridade duma direita/extrema direita.

Os resultados são os seguintes: PPE - Grupo do Partido Popular Europeu (democratas-cristãos), 189 lugares; S&D - Grupo Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, 135 lugares; Renew Europe (liberais), 79 lugares; ECR . Conservadores e Reformistas, 76 lugares; ID - Identidade e Democracia, (extrema-direita), 58 lugares; Verdes/ALE, 53 lugares; GUE/NGL - Grupo de Esquerda , 39; não inscritos, 45, e “outros”, 46 lugares.

Como explicar esta multitude de forças, como destrinçar as alianças e antagonismos, e ainda a evolução possível dados estes resultados? Todos têm opinião, mas na realidade ainda ninguém sabe ao certo, como também pouca gente consegue perceber este emaranhado de grupos e alianças. Quando for discutido no Parlamento quem será o próximo secretário-geral da Comissão Europeia, aí é que as águas se vão separar, ou clarear, como preferirem.

Independentemente do que se passar ao nível europeu, os resultados nacionais demonstram uma subida dramática da extrema-direita (caso da França) e inquietante (caso da Alemanha). Somando a estes a Itália, que já estão nas mãos dos neo-fascistas Irmãos da Itália; a Hungria, dominada pelo pai fundador da extrema-direita europeia, Viktor Orbán; a Suécia, onde um governo de coligação inclui o partido de extrema-direita Democratas Suecos; a Holanda, a Bélgica…

Bem, não há dúvida que a direita radical está a ir muito bem, enquanto que a esquerda radical não está a ir a lado nenhum, e o centro não sabe para onde é que vai. Soma-se a isto o facto de que Georgia Meloni se tem mostrado centrista em muitos aspectos. Na Alemanha, o neo-nazi AfD ganhou estrondosamente no território da antiga Alemanha comunista (RDE); os mapas sobrepôem-se.

Radicais de direita radical e não radical andam a namorar sem querer assumir um casamento. Depois ainda há os que são pró-Ucrânia e não-Ucrânia — anti-Ucrânia ninguém se atreve a dizer.

Não sei, e acho que ninguém sabe, como é que as coisas se vão compor, quando baixar a poeira. Uma coisa é certa: a Europa está um saco de gatos e arricamo-nos todos a ficar arranhados.

E agora o que está para vir, neste ano emocionante.

Entre 30 de Junho e 7 de Julho decorrem as inesperadas eleições parlamentares em França, convocadas com grande risco por Macron, como resultado da vitória do Rassemblent National nas europeias.

Os comentadres abanam a cabeça e torcem a língua para explicar porque é que o presidente francês tomou esta decisão. Ninguém percebe como é que uma eleição em cima de uma derrota estrondosa pode favorecer alguém que não seja o partido de Marine Le Pen.

A esquerda formou imediatamente um novo Front Populaire, mas a esquerda toda junta não chega para a extrema-direita. Ainda por cima o secretário-geral do partido Os Republicanos, de direita-apenas, afirmou que se ia aliar com a direita-radical. O partido tenta agora destituí-lo, mas é evidente que há uma cisão nesta barreira mais próxima contra o extremismo. Tudo isto é emocionante, mas não se pode garantir que no final do filme são os razoáveis que ganham.

A 4 de Julho é a vez do Reino Unido, também numa eleição inesperada, “snap” como eles lhe chamam. Também não se sabe porque Rishi Sunak tomou esta decisão, dado o estado lastimoso em que estão os Conservadores e o declive descendente do país desde o Brexit. Talvez tenha pensado que se é para morrer, é melhor morrer depressa. Porque não há nenhuma dúvida de que os Trabalhistas vão ganhar, apesar de Keir Starmer não ser muito afirmativo. Pode dizer-se, mais propriamente, que o Partido Conservador vai perder e os outros - também há os Dem Lib - ocupar o vazio.

Uma nota interessante, e talvez reveladora do estado da negação em que a outrora espampanante Inglaterra está, é que ninguém, nem governo, nem oposição, fala do elefante na sala, o Brexit. Até que profundezas terão os britânicos que se afundar para assumirem que se enganaram e voltar para trás?

Finalmente, a 5 Novembro, as eleições presidenciais norte-americanas. À medida que se aproximam, e se torna cada vez mais provável que a “ameaça laranja” vença, lemos o descrétido e o estupor nos mídia liberais americanos, e o pânico na Europa.

Trump, impávido, diz coisas cada vez mais racistas, estremistas, impensáveis. Os “think tanks” conservadores já têm planos públicos de centenas de páginas a pormenorizar como vai ser a vingança: limpeza do aparelho de Estado, trocando eficiência por lealdade ao líder, deportações de milhões de imigrantes, perseguição a todos os desafectos, começando pela “Biden crime family”. Coisas inenarráveis são ditas, fidelidades impensáveis são afirmadas, e as sondagens dão sistematicamente a vitória a Trump.

Já aqui o disse, e volto repetir: o mundo não será o mesmo se Donald Trump ganhar.

Que pelo epitáfio para um ano tão democrático...