Depois de várias semanas em que a palavra “desconfinamento” esteve incluída no index de palavras proibidas, estamos finalmente numa altura em que nos é permitido articular esse jovem vocábulo. Um dos fatores a que se presta mais atenção no âmbito do planeamento é o R, que mede o risco de transmissão. O R é mais um caso de celebridade instantânea - uma verdadeira Paris Hilton da epidemiologia -, uma vez que toda a gente o define como “o famoso R”, sem realmente termos noção das razões que o tornam numa celebridade.

Ora, se é inegável que os novos casos continuam a diminuir, é precisamente o R que preocupa os especialistas. Tem vindo a subir desde meados de fevereiro, ou seja, tem crescido mesmo ainda dentro do período de confinamento. Numa fase em que o governo se prepara para apresentar o plano de desconfinamento, estes dados podem colocar entraves à velocidade a que o país reabrirá. Os especialistas Carlos Antunes e Jorge Buescu defendem que o desconfinamento terá de ser feito de forma muito faseada e - eis algo que não esperava a ler - “navegando à vista”.

É mais um paradoxo para acrescentar à longa lista dos que surgiram durante esta pandemia. Portanto, uma das coisas mais perigosas que se pode fazer na gestão de uma pandemia é navegar à vista. Porém, outra das decisões mais irresponsáveis que se pode fazer na gestão de uma pandemia é planear as coisas com antecedência. Por um lado, a primeira opção leva à tomada de decisões em cima do joelho; por outro lado, a alternativa conduz à inadequação das medidas e a inevitáveis retrocessos. Simples, não é? Se o R descer para determinado valor, podemos desconfinar. Contudo, se desconfinarmos o R volta a subir e temos de confinar. Se voltarmos a confinar, o R ficará controlado, o que permitirá um desconfinamento. Desconfinando, não há maneira de o R não subir. Qual a forma de o fazer diminuir? Ora, confinar, claro está.

Há uma semanas, António Costa pediu consenso aos cientistas. E ai está ele: se as pessoas estão em casa, o vírus incide menos. Se as pessoas vêm para a rua - podem não acreditar - o vírus incide mais. Agora desenrasca-te, António. Provavelmente por causa da dor de cabeça que a multiplicidade de más opções causa, a estratégia do governo tem sido tomar medidas a jusante do que já está a acontecer. As pessoas assustam-se e fecham-se em casa? Confina. As pessoas relaxam e já andam cada vez mais pelas ruas? Desconfina. É como dizer "senta!" a um cão quando ele já está sentado por vontade própria e "busca!" quando ele já partiu atrás da bola.

Emocionalmente, todos queremos que este confinamento tenha sido o último dos confinamentos. Racionalmente, sabemos que, até atingirmos a imunidade de grupo, nada nos garante que o cenário de Janeiro é irrepetível. Seria bom afastar a ideia de que, há quase dois meses, fechámos tudo para ganhar balanço para abrir tudo. Os confinamentos servem para evitar o desastre, não para abrir caminho para a vitória final sobre o teimoso bicho. Esse êxito - a acontecer - partirá da vacina. O problema é que, mantendo-se o atual ritmo de distribuição, só conseguiremos vacinar 70% da população no fim do verão. De 2022. A circum-navegação planeada de Magalhães aconteceu de 1519 a 2022. 500 anos depois, a circum-navegação à vista da pandemia é capaz de nos ter levado por um caminho ainda mais demorado.

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