Para começar, e antes de avançarmos para as palavras prometidas no título, aponto para as placas das estradas catalãs que prometem uma terra chamada «Vielha».

Vielha é a capital da região catalã de Val d’Aran, que fica na vertente norte dos Pireneus. No fundo, tecnicamente, já não faz parte da Península Ibérica. Esta particularidade geográfica nota-se na língua: «Vielha» não é um nome catalão, mas antes aranês, uma variante do occitano, a língua do Sul de França que conhecemos por vários nomes, como langue d’oc, provençal, entre outros. O aranês é, em conjunto com o catalão e o castelhano, língua oficial do Val d’Aran.

Interessa isto a um português? Interessa, se for pessoa curiosa por línguas e afins. Mas, mesmo que não o seja, fique a saber: aquele «lh» em «Vielha» é uma velha tradição occitana de representação de um som que não existia em latim. Quando os portugueses começaram a escrever o mesmo som, imitaram a solução provençal. O nosso dígrafo «lh» terá vindo, portanto, de terras occitanas — e encontramo-lo no nome de Vielha. Nos nomes em catalão, o dígrafo usado é «ll», como em «Andorra-la-Vella».

Não é só neste pormenor ortográfico num recanto montanhoso da Catalunha que encontramos parte da história da nossa língua. Na própria língua catalã, encontramos muitas palavras que vieram a dar origem a palavras portuguesas.

Vou dar dez exemplos (há mais).

1. Bosque

Muitas vezes, quando um português repara no catalão sem conhecer bem a história da língua, diz que é uma mistura de castelhano e francês. Poderá parecer, sim, principalmente quando ouvimos verbos como «parlar» ou «menjar».

A verdadeira língua irmã do catalão é não o francês, mas o occitano. Assim, há palavras de origem catalã que também podem ser de origem occitana. As línguas tinham fronteiras nada fáceis de definir na Idade Média — aliás, ainda hoje não são nada fáceis, apesar da ilusão de fronteiras claras que as línguas nacionais nos transmitem. Ainda por cima, as palavras não eram importadas com etiqueta.

Um exemplo de palavra de que não se sabe muito bem se terá vindo do catalão ou do occitano é «bosque», com origem em «bosc» — que «bosc» e «bosque» se pronunciem da mesma maneira diz bastante da forma, digamos assim, resumida como lemos o «e» em muitas situações.

A palavra foi também oferecida ao castelhano — e tinha vindo do latim tardio («boscus»), que a tinha ido buscar aos germanos (nas línguas germânicas deu origem, entre outras palavras, ao «bush» inglês, com outro significado).

2. Orgulho

A palavra «orgulho» veio do catalão «orgull» e chegou a várias outras línguas latinas. Tal como o bosque, também tinha vindo das línguas germânicas.

Sim, é verdade: falarmos da origem das palavras, seja ela catalã, persa, latina ou outra coisa qualquer, é muitas vezes uma imprecisão. As palavras raramente aparecem do nada numa língua: vêm quase sempre de outro lado qualquer. Portanto, estas dez palavras que aqui estou a enumerar são, na verdade, palavras que passaram pelo catalão e vieram parar ao português, onde também estão de passagem.

Talvez por isso seja muito difícil aceitar algum tipo de orgulho pela invenção das palavras — são sempre nossas e de muitos outros e estão sempre a mudar, na caótica dança das conversas ao longo dos séculos.

3. Capicua

Nos dois primeiros casos, a origem catalã está bem disfarçada. Neste terceiro exemplo, temos claramente a expressão catalã «cap i cua», ou seja, «cabeça e cauda». Uma capicua é um número em que tanto se dá se começamos a ler pela cabeça ou pela cauda…

«Cap» é uma palavra com muitos significados no catalão. Quer dizer «cabeça», «chefe» e ainda «nenhum» (e haverá mais sentidos, estou certo).

«No hi ha cap problema»: não há nenhum problema.

4. Molhe

Barcelona sempre foi um dos grandes portos do Mediterrâneo e os catalães viajaram pelo antigo Mare Nostrum — a própria língua ainda é falada numa terra da Sardenha.

Há, assim, algumas palavras marítimas do catalão que ganharam tanta força que vieram parar a este lado da Península. «Molhe» é uma delas.

Há também muitas palavras catalãs relacionadas com ventos. «Sotavento»*, por exemplo, vem do «sotavent» catalão. «Sota» quer dizer «sob». «Sotavento»: sob o vento.

5. Ilha

«Ilha» é outra das palavras marítimas que chegaram ao português vindas do catalão. Se lhe juntarmos «bosque» e a última palavra desta lista, vemos que há um certo sabor de aventura nas palavras portuguesas que vieram do catalão.

Como acontece com muitos empréstimos, já cá tínhamos outra palavra que significava a mesma coisa: «ínsua». Essa palavra acabou por se restringir às ilhas fluviais. Também reimportámos a palavra latina («insula») em palavras como «península» ou «insular». As palavras multiplicam-se ao sabor dos caprichos dos falantes e não obedecem a qualquer desejo de arrumar o vocabulário.

6. Molde

Esta palavra não tem nada de marítimo, mas também veio do catalão. Ou melhor, como já vimos acima, passou pelo catalão. Neste caso, veio do latim «modulus», passou ao «motle» catalão, transformou-se no «molde» castelhano e acabou no português.

Algumas das palavras catalãs fazem este caminho: passam pelo castelhano antes de chegar ao português.

Não é nada de extraordinário: o castelhano está no meio e teve, durante séculos, muito prestígio no nosso país.

7. Relógio

O nosso relógio vem do «rellotge» catalão, que chegou a ter a forma «orollotge», que mostra bem a origem no latim «horologium», que por sua vez tinha vindo do grego «hōrológion» (contador de horas). Do catalão passou ao «reloj» castelhano e ao «relógio» português — e ainda a outras línguas.

A palavra parece trazer em si um vento do Mediterrâneo: do grego ao latim, passando depois ao catalão, até se atrever por fim a atravessar a Meseta em direcção à nossa língua.

8. Papel (e pincel)

Parece haver uma tendência para várias palavras terminadas em «-el» terem origem catalã. «Papel», por exemplo, e «pincel».

A estas palavras do lado oriental da península aplicámos uma tendência muito ocidental, comum ao galego e ao português: eliminámos o som /l/ entre as vogais do plural: «papel», «papéis».

9. Perfume

Neste caso, a palavra terá partido do catalão ou do occitano (ou de ambos) e terá sido importada pelo francês na forma «parfum». Há poucas certezas — mas sabemos que, do francês, se espalhou pelo mundo e chegou ao nosso «perfume».

Há dúvidas, muitas dúvidas — como, aliás, é comum nestas aventuras da etimologia. Neste caso, as dúvidas são tantas que eu nem devia incluir a palavra na lista. Mas, como usei duas palavras no número oito, vou permitir-me este abuso e avançar, então, para a última palavra da selecção.

10. Viagem

A origem exacta não é fácil de confirmar: veio de «viatge», é certo, mas essa é mais uma palavra partilhada pelo catalão e pelo occitano.

Por acaso, foi numa viagem às montanhas que separam a Catalunha das terras occitanas que ganhei a pancada das línguas. Aos 14 anos, fui a Andorra com a minha família, todo contente de mapa na mão (não havia GPS), ansioso por entrar num país tão pequeno que parecia de brincar.

Foi já no quarto de hotel nesse país escondido entre montanhas que se deu o caso: liguei a televisão e pus-me a ver e a ouvir uma senhora a falar. Fiquei especado. Sabia reconhecer bem o castelhano e o francês, mas não fazia ideia de que língua era aquela. Quis saber mais. Até hoje.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang