1. Parecia um mau vídeo, ou a sátira de uma seita, mas era a eleição presidencial no Brasil, em directo. O Eleito de olhos fechados, testa franzida, dando uma mão à jovem esposa, outra ao pastor que ungia a vitória com uma reza para “evangélicos, espíritas, católicos”, enquanto um negão figurava impávido logo atrás, e o ex-actor-porno-a-postos-para-o-governo empunhava o celular, registando tudo.
Foi assim que na noite de 28 de Outubro de 2018 Jair Bolsonaro se apresentou como presidente de um dos maiores países do mundo. O maior da língua portuguesa. Depois veio o discurso, e eu nunca tinha visto um presidente tão incompatível com a língua portuguesa. Não só porque manifestamente não a cultiva, mas porque ficou claro que já não precisa dela. Bastam-lhe uns farrapos, uns tweets, o básico do WhatsApp. Bolsonaro está para além da linguagem complexa. No novo aquém do humano.
Eis o fascista do século XXI. Aquele que, ao contrário de Hitler, ao contrário de Mussolini, ao contrário mesmo de Salazar, já nem sequer usa a cultura, aquilo que nos distingue como humanos. Mais, há todos os sinais de que a vai tratar como caça, como lenha. Um exterminador que se alimenta do que o humanismo denuncia nele, como se alimentou da facada de um maluco. O mais perigoso na sua vitória será mesmo isso, a retroalimentação do demo.
Então, foco no que está em risco, em quem corre perigo, porque esta luta vai ser longa. Guardemos vidas, e a vida: liberdade, trabalho, laços, beleza. Guardemo-nos uns aos outros.
2. Esta guarda começou a acontecer ainda antes do triunfo de Bolsonaro. Gente protegendo gente, unindo-se a gente, gente que nunca lutara. Muitas dessas pessoas estavam de luto, não só pelo Brasil em perda, como pelos próximos que não viram isso, e não votaram, ou votaram nulo, ou votaram Bolsonaro. Quando o favorito numa eleição é um homem que prega a nossa morte, um homem com brigadas que já estão a ameaçar, torturar e exterminar pelas ruas, é muito difícil entender como é que um próximo nosso pode ajudar a eleger esse homem, passiva ou activamente. Mas, ainda assim, muitas destas pessoas não ficaram paralisadas, saíram para virar votos, tentar conversar com indecisos, encheram as ruas de cor, de alegria, de gente junta.
E isso também aconteceu em Portugal. Destes dias horríveis, uma das coisas boas que podemos tirar é como o amor português pelo Brasil está vivo e forte. Colectivos organizaram-se na Internet, em contraponto aos ódios da Internet, e ao cinismo sempre de serviço. Reuniões, acções, manifestações, canções, rodas, vídeos, cartas, cartazes, partilhas: não serviram para nada? Serviram. Serviram para cá e lá alguém não se sentir sozinho, ter menos medo. Serviram para dizer que somos todos nós, que isto não é uma coisa que acontece aos outros, que se alguém pode ser morto por ser quem é, isso é com todos. Serviram para dizer que estamos juntos numa história, numa memória, nas canções do Caetano, do Chico, que este amor faz parte da nossa vida. Serviram para estarmos juntos. Eu vi portugueses e brasileiros tiritando no vento polar, diante da Faculdade de Direito de Lisboa, onde domingo os eleitores registados votavam. Alguns, algumas, como a portuguesa C., estavam ali desde as sete e meia da manhã, discretamente, e só saíram dali depois de as urnas fecharem. Quase doze horas num frio súbito, para ter a certeza de que abusos não aconteciam, ameaças não aconteciam, ninguém precisava de ajuda. E C., que nasceu uma década depois do 25 de Abril, que nunca viveu em ditadura, mas é alentejana e tem na família quem tenha sido morto pela ditadura de Salazar, tivera medo sim, depois da tensão que acontecera na Faculdade de Direito no primeiro turno, como todos temos medo, porque é estúpido não ter medo nenhum. E a seguir pensou que não podia ser, não podia deixar de estar ali, na Cidade Universitária, onde estudantes arriscaram a vida contra a ditadura, e hoje está a cara de Ribeiro dos Santos, assassinado pela PIDE. Era assim que ela queria passar o domingo, após muitos dias de trabalho subterrâneo, a organizar gente, a estudar leis. Ainda não foi ao Brasil, mas agora tem lá casa em várias cidades. O Atlântico nunca foi tão estreito.
3. Quem acha que isto não é connosco não está a ver o que aí vem, aliás, já está aqui. Quem se omitiu, relativizou, normalizou Bolsonaro, ou uma suposta neutralidade entre os extremos, não viu que nesta eleição não se tratava de dois lados democráticos. Não se tratava de esquerda e direita, nem de uma nova direita punir uma velha esquerda. Tratava-se de continuar dentro do campo democrático, do estado de direito. Quem equivaleu o PT a Bolsonaro, a surdez de quem votava Haddad à surdez de quem votava Bolsonaro, fê-lo contra a liberdade, contra a vida de muita gente, ainda que pensasse fazê-lo pela democracia. Fê-lo como se isto fosse uma eleição comum, com gente problemática de ambos os lados. Não era: um dos lados punha milhões em perigo, matava já nas ruas. E foi esse lado que venceu com a ajuda dos omissos, dos relativistas, de quem não viu o desmoronamento, o judiciário fazendo de executivo, juízes de justiceiros. E imagino que continue a não ver, mesmo depois de Bolsonaro nomear como superministro da Justiça o juiz que prendeu o seu rival.
Depois, claro, há quem tenha visto tudo, e seja a favor. Quem saiba bem que isto não foi uma eleição comum. Quem reconhece o que Jair Bolsonaro significa. Em Portugal, alguém como Jaime Nogueira Pinto. Um homem que em 1974, na revolução de Abril, foi para as ainda colónias portuguesas em África, na contra-corrente dos soldados que tinham feito a revolução. Foi combater até à última os africanos que lutavam pela libertação, tal era a sua fé no império português. Um homem que agora tem — ou até há pouco tempo tinha — um exército de “seguranças” em África, disponíveis para contratar. Figura inteligentíssima, erudita. Lá estava ele, na noite da eleição, num canal da TV portuguesa, no lugar de defensor de Bolsonaro, porque é preciso ouvir “as várias partes”. E as várias partes fizeram-se de facto ouvir, sobretudo as que desataram aos tiros na rua, antecipando a nova era de armamento. E no estúdio, em Lisboa, Nogueira Pinto seráfico.
Depois, há inteligências praticamente invertebradas como Paulo Portas, sempre a dançar aquele vira “Há-coisas-más-no-Bolsonaro-mas-gasto-muito-mais-tempo-a-dizer-como-o-PT-é-péssimo”. O que só se consegue com grande maleabilidade dorsal. Para quem não está a par, Portas foi vice-primeiro-ministro de Portugal na época em que a troika controlava o país, e agora está de volta à TV. Algumas partes jamais correm o risco de não ser ouvidas. Eu ouvi Portas dizer que a imprensa brasileira tem sido um sólido bastião da democracia, até em plena ditadura militar. E, enfim, ouvi o elogio dele ao homem “que teve mais rigor no dilema desta eleição”, Fernando Henrique Cardoso. Um homem sem coluna reconhece alguém que perdeu a coluna, ambos posando como homens do bem. Dá dois homens sem coluna.
4. Em Março de 2017 escrevi sobre uma suposta censura de que Jaime Nogueira Pinto teria sido vítima na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Critiquei então o título de capa do semanário “Expresso”, que anunciava “O texto proibido”, porque nenhum texto fora proibido. E continuo a pasmar quando me cai na rede algum farrapo das colunas de Monteiros, Raposos e etc.
Com a mesma liberdade, registo que nesta eleição brasileira o “Expresso” foi o único jornal português, tanto quanto sei, que publicou um editorial não-assinado, no plural, tomando posição contra Bolsonaro (“Votamos contra”). Vários outros textos se posicionaram contra na imprensa portuguesa, com destaque para o editorial do “Público”, de dia 28, assinado pelo director Manuel Carvalho. O editorial do “Expresso” distingue-se por ser um texto fora do padrão, que assume e afirma o carácter excepcional do momento, falando pelo colectivo, em nome do jornal.
Cresci a ler o “Expresso” nos primeiros anos da democracia portuguesa, antes de haver “O Independente”, “Público” ou rádios piratas, séculos antes de haver Internet. Um “Expresso” que só existe na cabeça de quem o leu. Domingo essa memória foi convocada por um editorial que lhe fazia justiça. E fez diferença.
5. Estes primeiros cinco dias pós-eleição foram uma trituradora. Brigadas de Bolsonaro emitiram listas de inimigos a abater com grandes artistas brasileiros. Uma professora barbie-armada sugeriu que os alunos filmem e denunciem professores “anti-Bolsonaro” nas aulas. Há sinais de pressão dentro das universidades. Frota, o tal ex-actor porno candidato ao governo, anunciou “a destituição dos direitos humanos”. O nome apontado para a Ciência anunciou que vai combater “inimigos internos e externos”. O nome apontado para o Desenvolvimento Social e Direitos Humanos responde por diversos processos, defende a “cura gay”, a perseguição das religiões de matriz africana e que as mulheres violadas tenham o filho. O futuro governador de Bolsonaro no Rio de Janeiro anunciou que a polícia vai “apontar à cabecinha… e fogo”. O filho de Bolsonaro revelou que fizeram um pacto para não serem presos. Bolsonaro, ele mesmo, sugeriu que a “Folha de S. Paulo” devia ser eliminada. Depois deu uma conferência de imprensa inédita no quintal, com os microfones em cima de uma prancha de bodyboard, e proibiu os jornais de assistirem. Antes, ou depois, não sei, disse a Netanyahu que ia transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Netanyahu respondeu chamando-lhe “meu amigo”. A lei anti-terrorismo, criada na véspera das Olimpíadas, deverá ser revista de modo a poder transformar em inimigo qualquer um. Movimentos sociais activos e produtivos, como os Sem Terra ou os Trabalhadores Sem Tecto, correm o risco de ser criminalizados. Chegou a anunciar-se a fusão do Ambiente com a Agricultura, o que seria dar logo a Amazónia ao agro-negócio, entretanto alguém deve ter avisado que assim o Brasil seria punido no comércio internacional, à hora a que escrevo não se sabe em que ficamos.
Não vai aguentar-se por muito tempo, isto? Talvez o pior que pode acontecer a alguém como Bolsonaro, de facto, seja estar no poder. Mas o preço a pagar entretanto é brutal.
E sobra muito trabalho, mesmo que o governo se auto-destrua em breve. Muito trabalho num país de 200 milhões onde esta era neo-liberal achou um campo fértil, capturando e reutilizando ressentimentos, como aconteceu nos EUA, no Reino Unido em partes da Europa Continental. Não foram os mais pobres que garantiram a eleição de Bolsonaro. Ele ganhou nas cidades mais ricas no Brasil, como Haddad ganhou nas mais pobres. Claro que não há 58 milhões de ricos no Brasil, que foram os votos que Bolsonaro teve. Como não há 58 milhões de fascistas no Brasil. Nesses 58 milhões haverá de tudo. E uma boa parte serão aqueles que a esquerda, na sua renovação urgente, tem de reconquistar. Como tem de conquistar os milhões que não votaram em ninguém.
O Brasil “testemunha um processo à escala mundial com o advento de um neoliberalismo hiperautoritário, nacionalista e racista, que viola abertamente os princípios da democracia liberal”, diz o sociólogo francês Christian Laval numa entrevista recente. “O golpe de 2016 abriu caminho para prolongar e mesmo radicalizar a política neoliberal conduzida pelo presidente Temer.” Sustentado “pelas oligarquias rurais, industriais, mediáticas, religiosas e financeiras, Bolsonaro, “um fascista fanático”, mobilizou inicialmente “o eleitorado das camadas superior e média com o tema da segurança e da corrupção” e explorou “todas as fontes de ódio contra as mulheres, negros, índios, homossexuais”. Eleito, “reprimirá e criminalizará qualquer actividade social e política que possa opor-se a ele para alcançar a unidade nacional em torno de seu programa”.
Alguma direita, visceralmente avessa ao PT, mas que se afirma como democrática — do género votaria-no-PT-engolindo-um-grande-sapo — acredita, com desgosto, que os desmandos de Bolsonaro vão fortalecer o PT como oposição, e libertá-lo da cobrança da corrupção. Não. Haddad saiu muito mais forte desta eleição, mostrou ter tudo para ser o grande estadista que o Brasil merece. Manuela d’Ávila, sua vice (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSOL), seu aliado firme no segundo turno, saíram fortes desta eleição, e não são do PT. O PSOL saiu forte desta eleição, elegeu mulheres negras multiplicando Marielle por muito, votações históricas. Mas o PT saiu em frangalhos, e terá de se recompor de raiz. Não acredito que a força da oposição vá vir do velho PT. O futuro da esquerda no Brasil passará pelos melhores no PT, mais o PSOL, que tem grandes deputados, mais gente agora dispersa, mais gente nova, gente negra, LGBT, mulheres, gente que pela primeira vez na história do Brasil está e quer estar na política para a mudar. Talvez surja uma aliança nova à esquerda. Certamente terá de ser uma nova esquerda. E quanto à corrupção deixar de ser tema, não. A corrupção não começou com o PT e não vai acabar com o PT. Mas o PT, pode essa direita ficar tranquila, continuará a pagar a factura maior de todos os erros que fez.
6. Depois da eleição recebi um insulto via messenger de uma brasileira cujo lema no FB (por baixo da foto de uma reza de Bolsonaro) era “Deus, família e propriedade. O resto não importa.”
Parece ser o mesmo Deus de Bolsonaro. Um Deus armado. Acho que o vi em várias partes do globo, nos últimos trinta anos. Vi-o entre muçulmanos, entre judeus, entre evangélicos, entre católicos, entre hindus, alojado como um vírus. Um Deus a que podemos chamar mal, à falta de outra palavra. E que nada tem a ver com o Deus de muçulmanos, judeus, evangélicos, católicos, hindus que também conheci, e a que podemos chamar bem, à falta de outra palavra.
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