1. Línguas de fantasia

Há livros, filmes e séries de fantasia em que as personagens, de vez em quando, falam línguas ficcionais.

J. R. R. Tolkien inventou, não uma, mas várias línguas, ainda antes de escrever O Senhor dos Anéis.

Já George R. R. Martin não se deu a esse trabalho para os livros d’A Guerra dos Tronos. Quando os livros se transformaram numa série, os produtores contrataram um linguista — David J. Peterson — para imaginar as línguas de povos como os Dothraki. Como o linguista descreve no livro The Art of Language Invention, nem sempre houve esta preocupação. Por exemplo, as línguas inventadas para a Guerra das Estrelas são palavras soltas, sem gramática que se veja.

Tanto as línguas de Tolkien como as de Peterson têm gramáticas complexas, subtilezas insuspeitadas e uma beleza muito própria. Não foram criadas para serem úteis ou fáceis de aprender, mas antes para espicaçar a imaginação do público.

Quando Peterson viu o primeiro episódio d’A Guerra dos Tronos, ficou um pouco aborrecido ao encontrar um erro gramatical numa das frases em dothraki...

E ficou aborrecido porquê? Alguém iria perceber? Sim! Hoje em dia, perante uma série destas, vista por milhões de pessoas e durante muitos anos, há sempre algumas pessoas que ficam obcecadas por estes pormenores. Há quem reconstrua as gramáticas das línguas inventadas e verifique se as personagens sabem, de facto, usá-las como nativos.

Mas não é só por isso: Peterson é um conhecido conlanger, ou seja, um criador de línguas. Este é um passatempo de muitas pessoas por esse mundo fora... Ora, ao criar uma língua para ser ouvida por tanta gente, um conlanger que se preze não quer ouvir a sua língua maltratada. Os actores têm de ser nativos de línguas que ninguém fala!

Os conlangers existem há muito, embora o nome seja recente. Desde sempre algumas pessoas se entretiveram a imaginar idiomas. As razões vão desde a tentação de imaginar uma língua perfeita (Umberto Eco conta muitas das histórias no livro A Procura da Língua Perfeita) até à necessidade de expressão artística através da criação de gramáticas — é o caso de Tolkien e outros.

Peterson é o exemplo de outro tipo de conlangers. São pessoas que criam línguas por prazer! Também existem há muito tempo — mas estas pessoas só começaram a perceber que não estavam sozinhas quando a internet permitiu, nos anos 90, juntar num só local virtual gente com interesses muito particulares espalhada pelo mundo...

Desde listas de distribuição a salas de chat, passando por blogues, websites, wikis e, agora, grupos de Facebook — toda a panóplia de canais e "sítios" virtuais ajudou a criar uma nova comunidade e uma nova arte com as suas tradições, regras e clubes — a criação de línguas. O livro de Peterson conta a história...

2. Disparates há muitos!

Mas — e esta é a outra face da moeda — a Internet também permite que uma multidão se junte para atacar o mais pequeno deslize, mesmo quando falamos de erros gramaticais em línguas que não existem.

Estes vigilantes são um colectivo mais atento que qualquer revisor de caneta em riste. Então se olharmos para as línguas naturais, encontramos, em vários recantos da internet, uma atenção implacável a tudo o que está escrito: cartazes, posts, comentários, oráculos da televisão, etc.

Não teria muito que dizer sobre isto — gosto de estar atento à língua —, não fosse dar-se o caso de esta "exigência linguística" ser, uma vez por outra, uma máscara para a ignorância arrogante.

Já vi insultos e palavras em fogo porque uma tradutora tinha usado a construção "ter pagado" (que está correctíssima). Já encontrei discussões tremendas por causa dum tempo verbal que era considerado erro apenas porque os participantes na discussão não o conheciam (falo do pretérito perfeito composto)... E, já agora, falando dos erros verdadeiros, quantas vezes não encontramos quem defenda a ideia de que são um fenómeno recente, como se há 100 anos os portugueses escrevessem de forma imaculada?...

O que fazer? As redes sociais e a Internet em geral expõem-nos a todo o tipo de exageros, ignorâncias, desvarios. Há quem fique convencido de que a estupidez está em expansão... Não está: o problema é a visibilidade da parvoíce e a rapidez com que se formam clubes de defensores de um qualquer disparate. Por isso, mais vale aceitar: todos acreditamos em disparates aqui ou ali; muitos de nós escrevemos, agora, no Facebook; desta forma, a probabilidade de encontrarmos disparates é muito elevada. Mais vale respirar fundo e avançar.

3. A turba digital

No entanto, a tal turba digital, por vezes, ataca com uma força que não podemos ignorar — uma força que raramente pára para pensar e, mesmo quando tem razão, é muito perigosa.

Sem sair da questão da língua — embora tudo o que estou a dizer se aplique a qualquer tema —, imaginemos que um famoso qualquer — político, artista, comentador — use, um belo dia, a construção "devia de". "Devia de"? Meu Deus! Começam a tremer as mãos. Sai um enxurro de insultos, sarcasmos, declarações bombásticas sobre o estado da língua, do país e do ensino. Certamente alguém dirá que "antigamente, todos aprendíamos português na escola"...

E, no entanto, a construção existe há muitos séculos em português. É uma construção portuguesíssima. Aqui fica uma frase — entre tantas! — de Calisto em A Queda dum Anjo, num discurso em defesa da língua portuguesa (!): "Se a linguagem portuguesa fosse aquilo que eu acabo de ouvir, devia de estar no vocabulário da língua bunda." Camilo Castelo Branco usava "dever de" com talento...

Não é caso isolado. "Dever de" aparece nos melhores autores. Aliás, encontramos "dever de" em livros pouco importantes como Os Lusíadas... (Convém assinalar que a expressão "pouco importantes", na última frase, contém ironia — que isto da escrita em linha dá-se mal com tais recursos.)

Hoje, famoso que calhe escrever "devia de" numa qualquer rede social é crucificado. Quem não conhece a construção, junta-se à multidão e acende as tochas virtuais.

Volto ao início: David J. Peterson, o inventor da língua dos Dothraki, afinal não tinha razão. Como explica no livro, a frase que lhe parecera errada estava, afinal, correcta — ele é que não se lembrava duma subtileza da gramática que inventara... Se o próprio inventor duma língua nem sempre conhece os meandros da sua gramática, o que dizer de nós, que falamos uma língua natural, antiga e complexa? Mais vale investigar primeiro e, se for o caso, corrigir depois — sempre com delicadeza.


Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Palavras que o Português Deu ao Mundo.