A opção entre estes dois cenários vai ser decidida nas eleições presidenciais norte-americanas de Novembro deste ano. À medida que os acontecimentos se desenrolam perante os nossos olhos incrédulos, o inimaginável parece cada vez mais inevitável. A polarização dos campos opostos, a agitação civil e as declarações de fúria ou de espanto indicam cada vez mais nitidamente dois desfechos catastróficos.
O que está a acontecer, em palavras e actos, indicam um desenrolar de acontecimentos que, sem exagero, terá efeitos telúricos para os Estados Unidos da América do Norte e, por extensão, para o equilíbrio do mundo tal como o conhecemos.
Quer se aceite esta premissa ou se recuse a aceitá-la, o que acontece no país (ainda) mais poderoso da face da Terra terá repercussões disruptivas na ordem internacional, de tal monta que se pode falar num mundo novo - sendo que “novo” não significa melhor. Não estou a ser catastrofista - os factos falam por si.
O Império norte-americano representa hoje o que o Império Romano representou na Antiguidade: uma mega-entidade cujas convulsões internas e e influência planetária têm um papel determinante no curso da História. Contudo, enquanto nos tempos da Roma imperial as pessoas talvez não tivessem a noção da magnitude da situação, os modernos meios de comunicação permitem-nos ver, em tempo real, a desintegração de uma ordem que parecia de pedra e cal. Para aqueles que odeiam o presente poderio imperial, será certamente uma boa notícia; mas quem sabe o que significa uma mudança tão profunda, só pode temer pela disrupção que virá a seguir. Quando um poder majestático se desfaz, segue-se um reajuste, e a seguir outro poder majestático se formará. No caso presente, e dando o nome aos bois, o fim da democracia norte-americana (mesmo que pseudo-democracia) levará ao domínio da ditadura chinesa. Não há lógica que contrarie esta evidência - a não ser que um meteorito destrua a Terra, haja uma invasão alienígena ou as alterações climáticas acabem com a espécie.
O que se passou desde 2016, quando Donald Trump se tornou o 45.º Presidente, foi uma sucessão de confusões, erros e maus julgamentos que deixou o mundo perplexo. Começou pela própria eleição; Hilary Clinton, a candidata democrata, ganhou a eleição popular (com 48% dos votos contra 46% de Trump) mas, devido ao sistema eleitoral indirecto, perdeu no Colégio Eleitoral, com 227 votos contra os 304 do vencedor. Além disso o Partido Republicano tinha maioria nas duas câmaras do Congresso, o que lhe dava mais facilidade de fazer o que quisesse.
Nos seus primeiros decretos nomeou juízes favoráveis ao porte indiscriminado de armas, decretou a construção dum muro com o Mexico para impedir a entrada de imigrantes ilegais (que classificou como “traficantes de drogas e violadores” e posteriormente como “pessoas inferiores”), tentou desfazer o único e incipiente sistema de segurança social nacional (conhecido como “Obamacare), acabou com as restrições à produção de energias poluidoras, classificou a China como “manipuladora de câmbios” e processou-a, assim como a Organização Mundial de Comércio, e ameaçou sair da NATO.
Nomeou um gabinete de 24 membros, quase todos bastante controversos, como o secretário da Defesa, John Kelly, que levou à mais numerosa demissão dos cargos de topo do ministério, ou o Secretário da Saúde, Tom Price, conhecido por declarar que as vacinas provocam autismo, ou o Secretário de Estado (equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros) Rex Tillerson, presidente da petrolífera ExxonMobil, ou ainda Secretário da Protecção Ambiental, Scott Pruit, defensor declarado das indústrias do petróleo, gás e carvão. Dos 554 postos superiores da Administração nomeou menos de metade, declarando ao “Washington Post” que era desnecessários.
Fora desses lugares institucionais nomeou vários acessores de credibilidade discutível, como Steve Bannon, conhecido activista de extrema-direita, o Assessor de Segurança Nacional, General Michael Flynn, que só durou um mês por causa da sua colaboração contínua com a Rússia, o seu genro Jared Kushner, um homem de negócios sem experiência política, e para a Educação escolheu a socialite Betsy DeVos.
Nos meses seguintes e durante os quatro anos da presidência todos estas figuras e dezenas de outras foram substituídas abruptamente, levando à percepção de que Trump escolhia precipitadamente os seus auxiliares e os despedia sem razão aparente, além de exigir deles “fidelidade” pessoal, em detrimento do interesse público.
Trump reforçou substancialmente o Serviço de Imigração (ICE) e proibiu a entrada de cidadãos de sete países muçulmanos.
Todas as nomeações e exonerações, medidas e contra-medidas dos caóticos primeiros cem dias da presidência podem ser consultados aqui.
Na política internacional, entre outras acções declarou que a NATO estava obsoleta, aumentou a hostilidade com a China, aceitou a liderança de Kim Jung-un na Coreia do Norte, com quem se encontrou, e descredibilizou os seus serviços de informação perante Vladimir Putin, com quem teve dois encontros. A sua posição amigável em relação ao ditador russo levou até que se considerasse que Putin teria informações comprometedoras dos tempos em que Trump esteve em Moscovo como promotor do concurso de Miss Mundo…
Também decretou a imediata retirada dos militares norte-americanos do Afeganistão e de outros teatros de guerra.
Na política nacional, além do caos geral que causou no aparelho de Estado, recusou-se a distribuir vacinas durante a epidemia da Covid-19 (causando mais de um milhão de casos fatais), defendeu publicamente a violência dos grupos de extrema-direita, como os Proud Boys, insultou os ex-combatentes (“veteranos”) como “idiotas que se deixaram matar”, comentou “porque é que os meus generais não me são fieis, como os de Hitler?” e fez incontáveis afirmações, grandes e pequenas, que deixaram a America e o Mundo perante a evidência de que estavam perante um narciso mórbido, instável e imprevisível.
Nestes 16 parágrafos resumi, de forma muito abreviada, o que foram quatro anos absolutamente alucinantes para os Estados Unidos e assustadores para o planeta. Pela primeira vez, desde 1945, a política norte-americana (boa ou má, conforme a opinião de cada um) deixava de ser previsível, dominada por um indivíduo cuja carreira, vista em retrospectiva, nunca deveria ter possibilitado a sua eleição para o cargo de “homem mais poderoso do mundo”.
Trump tornou-se conhecido por ser o protagonista de um programa de televisão “O Aprendiz”, entre 2004 e 2015. Essa popularidade permitiu-lhe apresentar-se como candidato a Presidente, mas também revelou um homem de negócios desonesto, que não paga aos fornecedores, engana os bancos, explora os seus contratados e engana o público sempre que pode. Entre outros casos, ficou famoso o da “Universidade Trump”, um esquema fraudulento que foi legalmente julgado como um “conto do vigário” e extinto. Contudo, a fama de aldrabão não o impediu, graças à sua personalidade agressiva e uma espécie de carisma inverso, de ser eleito candidato pelo Partido Republicano e depois Presidente.
Segundo um fact-check feito pelo Washington Post em 2021, Trump mentiu ou fez afirmações enganosas 30.573 vezes em quatro anos! Escreve o jornal: “Trump disse uma média de seis afirmações falsas por dia no primeiro ano como Presidente, 16 no segundo, 22 no terceiro e 39 mentiras diárias no último ano. Calculando de outro modo, levou 27 meses a chegar às 10 mil mentiras e mais 14 meses para atingir as 20 mil. Passou a marca das 30 mil cinco meses mais tarde.”
Mas o pior estava por vir. Quando perdeu as eleições presidenciais para Joe Biden, em 2020, Trump imediatamente declarou que tinham sido viciadas, falsificadas e nulas. Juntamente com os seus aliados, montou uma campanha nacional para revelar que houvera inúmeras fraudes, sendo que nenhum dos casos apresentados ficou provado em tribunal. O que ficou provado (e gravado) é que Trump chegou a telefonar ao delegado eleitoral da Georgia, Brad Raffensperger, para lhe “arranjar 11 mil votos”.
E o cúmulo ocorreu a 6 de Janeiro de 2021, quando Trump incitou os seus mais ferverosos adeptos, geralmente pertencentes a grupos de extrema-direita, a ir a Washignton, invadir o Capitólio e impedir o vice-Presidente, Mike Pence, de anunciar os resultados da eleição. Milhares de pessoas invadiram o edifício, destruiram instalações e provocaram cinco mortos e 174 feridos. Até Setembro de 2023, 1.146 indivíduos foram acusados e 378 condenados por insurreição. Incontáveis vídeos mostram os revoltosos a trepar pelas paredes e delapidar as salas - e Trump, numa tribuna ali perto, a incitá-los.
Até hoje, Maio de 2024, milhões acreditam que a eleição foi roubada e Trump continua a afirmá-lo, já em preparação para uma possível derrota em Novembro.
Neste momento, Trump tem quatro processos a decorrer em tribunal, dois a nível estadual e dois federais. Já foi condenado num processo de violação e condenado a pagar 83,3 milhões de dólares à ofendida num futuro próximo. Também está a ser julgado por fraudes referentes aos seus negócios, em que terá de pagar 355 milhões de dólares.
Mas os mais importantes são os casos pendentes, sobretudo os estaduais. Porquê? Porque a lei norte-americana permite que um Presidente se auto-amnistie de uma condenação federal - o que ele certamente fará, se for eleito - mas não numa condenação estadual, sobre a qual não tem jurisdição.
Um dos casos federais refere-se ao facto de ele ter levado para a sua casa da Flórida documentos secretos nacionais, o que é ilegal. Tudo indica que o caso só concluirá em 2025. O outro refere-se à sublevação de 6 de Janeiro e também só se concluirá em 2025. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, que é maioritariamente pró-Trump, está a julgar o caso de um dos detidos na insurreição de 6 de Janeiro. Se decidir a favor do queixoso, automaticamente todos os casos dos insurrectos são anulados, assim como a acusação de que Trump os incitou.
Agora, os casos estaduais. O primeiro, a tentativa de aliciar Raffensperger para arranjar votos na Georgia, os especialistas não conseguem prever o resultado. Pode ser absolvido, ou pode ser condenado a uma pena de prisão.
O segundo, que está a decorrer em Nova Iorque, refere-se à tentativa de encobrimento do caso que ele teve com uma prostituta antes das eleições de 2016. Ter relações com uma prostituta não é crime; mas é crime usar dinheiro da campanha eleitoral para a calar, assim como tentar ocultar o caso para influenciar as eleições - as peripécias deste caso davam um artigo inteiro; talvez o faça quando sair o veredicto - a pena pode ser de prisão efectiva.
Mas o mais surreal é que a lei não impede um Presidente eleito de exercer o seu mandato mesmo que esteja preso. E, como já salientei, tratando-se de um processo estadual, Trump não poderá perdoar-se. Ou seja, existe uma possibilidade, caso ele ganhe as eleições, de exercer na cadeia!
Durante esta campanha Trump já disse claramente qual será o seu programa como Presidente. Essa programa baseia-se na sua evidente sede de vingança e num documento extenso publicado pela Heritage Foundation, uma organização não governamental super-conservadora, chamado Projecto 2025. Está publicado, toda a gente o pode ler, e estabelece os princípios para tornar os Estados Unidos, senão uma ditadura, pelo menos uma “democracia iliberal” de forte pendor cristão. É de arrepiar os cabelos.
E aqui chegamos à situação em que o resultado da próxima eleição só pode correr mal, ganhe quem ganhar. Ou Trump vence e os Estados Unidos dão uma virada radical à direita, abandonam a protecção que têm dado à Europa e às democracias liberais, e alinham com a Russia de Putin (lá se vai a Ucrânia, os palestinianos, e a própria Europa…) ou Trump é derrotado, declara as eleições fraudulentas e começam imediatamente uma série de violências dos grupos radicais de direita. Se não for uma guerra civil completa, não andará muito longe.
Não se sabe, por exemplo, quais serão as posições das forças armadas e da Guarda Nacional dos vários Estados. É preciso não esquecer que os militares norte-americanos têm um efectivo de dois milhões de homens no activo. Juraram como um todo defender a Constituição, mas neste caso muitos certamente defenderão Trump. E também convém lembrar que há 120 armas por cada 100 civis, não contando com as não registadas e as feitas em impressoras lazer (ghost guns).
Se isto não é um barril de pólvora, são milhões de barris de pólvora, com as mechas na mão de pessoas radicalizadas com convicções fortes e o sangue a ferver…
Se quer ter uma ideia mais gráfica deste futuro, vá ver o filme “Guerra Civil”, de Alex Garland, em exibição em Portugal. Vá, enquanto pode!
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