Joe Biden só no próximo 20 de janeiro vai completar um ano em funções depois de ter batido Donald Trump e conquistado maioria para presidir e governar nos EUA. É facto que nestes 12 meses mudou o relacionamento dos Estados Unidos com o mundo (“America is Back”, proclamou o presidente) mas Biden confronta-se com a ameaça forte de, já a partir do próximo novembro, ficar bloqueado pelos republicanos se estes, nas eleições “midterm” recuperarem o controlo do Senado. Aliás, o alinhamento do senador democrata Manchin com os republicanos já está a encravar a presidência democrata. Na Europa, as eleições presidenciais, já nos próximos meses, em França e em Itália também vão determinar o rumo da União Europeia.
O fim da longa condução política por Angela Merkel obriga a mudar o motor da Europa. Com o novo chanceler social-democrata Scholz ainda em fase de instalação, o francês Macron, que até aqui aparecia como nº2 no comando europeu, aspira impor-se como o líder principal.
Tornou-se óbvio antever que o anterior comando político da Europa pela dupla Merkel e Macron passaria para um trio com Macron, Scholz e Draghi.
Mas tal como nos Estados Unidos este 2022 também tem grandes incertezas nos maiores países da União Europeia.
Um dos casos é a Itália de Draghi. O ex-banqueiro central europeu (ficou conhecido por Super Mario, depois de assumir que faria tudo o que fosse preciso para salvar a moeda europeia nos tempos de tempestade financeira) assumiu em fevereiro a chefia do governo italiano e conseguiu novo milagre: primeiro, foi capaz de reunir o tão fragmentado leque político italiano e formar um governo que segue coeso e apoiado por nove partidos de direita e de esquerda, incluindo todos os principais antes tão adversários; depois, está a conseguir a reconstrução da confiança política em Itália.
A credibilidade interna e internacional de Draghi está confirmada e puxa-o para o topo da influência na condução das políticas da União Europeia. Pelo passado que teve no BCE, Mario Draghi emerge mesmo como a mais respeitada personalidade no sistema de poder na União Europeia – a par da líder que não é eleita pelos cidadãos, Ursula von der Leyen.
Mas a política italiana não é capaz de estar serena. O mandato do atual presidente Sergio Mattarella termina em março. Mattarella é, conforme a tradição italiana (Pertini, Napolitano, outros) muito respeitado, mas está com 80 anos e não quer recandidatar-se.
Há nas lideranças partidárias em Itália, sobretudo à direita, inquietações pela perspetiva de Draghi estar a reunir consensos para continuar por bastante mais tempo como chefe do governo de Roma. Daí que Salvini (o desenfreado líder da Liga soberanista) e outros tenham imaginado que a sucessão de Mattarela é uma oportunidade para empurrar Draghi para a presidência da República (em Itália a eleição do presidente é indireta, através do voto de deputados e senadores) e assim reabrir aos partidos o combate pela chefia do governo – Salvini continua a sonhar com o posto de primeiro-ministro.
Draghi, consciente de que está a ser o pilar da reconstrução italiana, começou por afastar a possibilidade de avançar para a presidência. Mas começa a especular-se com o avanço imediato da há muito reclamada mudança do sistema político italiano. Há neste momento quem, por exemplo no Partido Democrático (família política do PS, agora à frente nas intenções de voto em Itália) mostre abertura à semi-presidencialização do regime italiano, à maneira francesa. Nesse caso, Draghi seria uma personalidade fiável para conduzir a inovação a partir do cargo de presidente. Porém, esta transformação política, se avançar, tem o defeito de acontecer pessoalizada, engendrada à pressa para resolver a questão Draghi.
É assim que a Itália que nestes últimos 10 meses viveu, apesar da pandemia, em grande estabilidade volta a entrar num cenário de confusão política. Esta incerteza italiana também se reflete nos cenários de comando da Europa: vai continuar a ser Draghi o nº1 de Itália no Conselho Europeu?
A dúvida também se coloca em relação ao francês Emmanuel Macron. Há eleição presidencial em França a 10 e 24 de abril. Macron está na frente das sondagens mas, nas sondagens para a primeira volta, não passa dos 25%. Enfrenta o desafio de duas candidaturas à direita: desta vez Marine le Pen, desgastada por muitos anos a clamar mas sem sair do nicho nacionalista ou extremista e sem conseguir resultados, não parece entrar vigorosa nesta eleição; o desafio à direita vem de Valérie Pécresse e de Éric Zemmour.
Pécresse é a candidata da direita clássica. Ela dá vida ao gaulismo, reivindica a herança política de De Gaulle, Pompidou, Chirac e Sarkozy. Quer representar Merkel mais Thatcher e junta-lhe Reagan. É empática, tem carisma, atrai a direita moderada e centrista, mas está demasiado associada à elite parisiense. Pode ser-lhe difícil captar o importante voto da França rural.
Zemmour é o caso destas eleições. Está a ocupar o espaço que era de Le Pen. Capta o voto dos que em França estão contra. Põe-se à cabeça da muita França anti-muçulmana e a radicalmente anti-europeia. É uma personagem para quem não importa o respeito, nem pela verdade nem pelos adversários. Zemmour pretende colocar-se como um sobrevivente intelectual à degeneração da vida política francesa. Destila racismo e ultranacionalismo com oratória que deixa KO o discurso de Le Pen. Também despreza a igualdade de género. A direita tradicional que chegou a achar graça ao discurso cheio de citações cultas de Zemmour está a perceber-se do risco que ele representa. Zemmour reduz Le Pen a uma personagem superficial sem alicerces, ele é o letrado que sabe falar.
Tanto Zemmour como Pécresse estão com 17% das intenções de voto para a primeira volta das presidenciais.
Macron, com 25%, parece ter assegurado a presença entre o duo de finalistas, em 24 de abril, da eleição presidencial francesa.
Se o outro finalista for Zémmour então uma vez mais as estilhaçadas esquerdas vão juntar-se à direita democrática para elegerem Macron para assim barrarem o candidato ultra. Já tinha acontecido o mesmo quando a escolha envolveu os Le Pen, pai e filha.
Mas, se a finalista frente a Macron for Valérie Pécresse, tudo pode acontecer. Pécresse apresenta-se como a novidade simpática que denuncia o “imobilismo“ de Macron que fez os franceses perderam poder de compra. Também se coloca como a mulher empática da direita civilizada contra o “extremismo” de Zemmour oposto à tradição francesa.
Frente a Pécresse desmorona-se o argumento “ou eu ou o caos” da campanha Macron. Tudo pode acontecer.
É assim que a França está nos próximos 100 dias em incerteza política. Por tabela, também a Europa, apesar de Macron mobilizado para que o atual semestre de presidência francesa da União Europeia seja um festival de êxitos.
Esta incerteza francesa e italiana vai necessariamente perturbar o arranque deste semestre político na União Europeia.
Coincide com a dúvida que abala a liderança dos EUA. É extraordinário o que Biden conseguiu em menos de um ano. Biden representou a mudança que tanta América ambicionava na viragem de 2020 para 2021. Era preciso acabar com o tempo de Trump.
Mas, um ano depois da eleição, uma sondagem Morning Consult no Politico mostrava que para 42% dos inquiridos, Biden já não aparece como o presidente transformador que eles aspiravam.
Tinha sucedido uma frustração semelhante com a presidência Obama: por grandes que sejam as reformas políticas, não são tão audazes quanto muitos eleitores ambicionam.
Biden não está a conseguir conciliar a maioria democrata silenciosa que é centrista com a aguerrida minoria esquerdista encabeçada por Alexandria Ocasio-Cortez e Bernie Sanders. A vice-presidente Kamala Harris não aparece a dar a esperada energia política ao presidente que tem 79 anos. Nos EUA, os vices são candidatos naturais à presidência – o próprio Biden, tal como Bush pai ou Nixon foram vices antes de serem presidentes – mas estão instaladas muitas dúvidas sobre as possibilidade de Kamala ganhar e suceder a Biden em 2024.
Biden é o presidente e os democratas têm maioria na Câmara dos Representantes e (de modo tangencial) no Senado mas há a sensação de que os republicanos continuam a controlar o poder nos EUA. O desvio do senador democrata Manchin para posições republicanas está a contribuir muito para essa sensação.
O facto de a pandemia estar a ressurgir, a inflação a crescer e as mais audazes prometidas reformas democratas estarem bloqueadas está a empurrar a presidência Biden/Kamala para um beco de frustração.
Se não houver uma reviravolta nos próximos meses os republicanos vão em novembro tomar o controlo político dos EUA e os últimos dois anos da presidência Biden ficarão penosos.
Biden ganhou a Trump as eleições no ano passado, mas um ano depois não está a conseguir ganhar-lhe em comunicação.
Não se pode dizer, de modo algum, que a presidência Biden/Kamala esteja a ser um fracasso. Mas falta-lhe mostrar em 2022 que é a presidência que a América desejou no final de 2020.
É por entre estas incertezas que o ano 2022 entra recheado de dúvidas sobre o que esperar de países na liderança internacional, que se confronta com a previsibilidade chinesa e russa.
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