Todas as semanas, quando procuro um tema para esta coluna, que escolhi ser dedicada a questões internacionais, a dúvida está na escolha do caso, não na falta deles. Há temas que têm novos desenvolvimentos constantemente, como a crise da democracia norte-americana, ou o descalabro da política brasileira. Há os casos na berra, como a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, ou a imigração desesperada nas fronteiras da Europa; poderia escolher ainda as crises agudas em andamento, como a repressão na China, a luta jurídica/constitucional em Israel, ou a violência estatal no Irão ou em Myanmar. Finalmente, mas não por fim, há conflitos que deflagram de repente um pouco por todo o mundo, reavivando questão nunca resolvidas. É fartar, vilanagem!

(Se tivesse decidido incluir questões nacionais, então precisaria de duas ou mais colunas por semana, quiçá mais desanimadoras do que a constatação da falta de bom senso internacional… Adiante.)

Dispondo na mesa as cartas deste tarot deprimente , desta vez viramos a que mostra o actual pico no “desentendimento” constante entre arménios e azerbaijaneses.

O que sabemos da Arménia, em geral? Que os arménios foram massacrados pelos turcos no final da I Guerra Mundial e que o nosso grande benfeitor cultural, Calouste Gulbenkian, era natural de lá. E do Azerbaijão? Que é um daqueles inúmeros países a sul da Rússia cujo nome acaba em “ão”, com muito petróleo e regimes de legitimidade duvidosa.

Então, cá vai mais informação: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi oficialmente proclamada em 1922 e dirigida por Estaline a partir de 1924, após a morte de Lenine. Essas repúblicas, incorporadas por passividade, manobras políticas e força bruta - sobretudo força bruta - eram a Rússia propriamente dita, a Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Estónia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Letónia, Lituânia, Moldávia, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão.

Posteriormente, a seguir à II Guerra Mundial, regimes comunistas foram implantados na Alemanha de Leste (RDA), Bulgária, Polónia, Hungria, Checoslováquia, Roménia, Albânia e Iugoslávia - sendo esta última a união da Bósnia, Herzegovina, Croácia, Macedónia, Montenegro, Sérvia, Eslovénia, Kosovo e Voivodima. Contudo, estes países mantiveram uma independência nominal e nunca foram repúblicas da União Soviética; faziam parte daquela entidade cercada por uma “cortina de ferro”, para usar a expressão usada por Churchill em 1946, e não interessam para esta história.

Para esta história interessa o seguinte: algumas destas “repúblicas”, sobretudo as a sul da Rússia, constituídas à força para formar o quadro institucional da URSS, eram compostas por várias etnias que lutavam entre si desde tempos imemoriais. A mão de ferro de Moscovo ignorou essas rivalidades, subjugando-as ou acalmando-as, conforme convinha, em nome do “internacionalismo proletário” que deveria ser, evidentemente, cego a tribalismos arcaicos. A URSS era governada sobretudo por russos étnicos, mas a nomenclatura do Partido incluía gente que tinha subido pelo aparelho estatal de muitas etnias; Estaline e Beria, por exemplo, eram georgianos, Trótski era - imagine-se! - ucraniano.

Com a implosão da União Soviética, em 1991, as repúblicas declararam quase imediatamente as suas independências de variadas formas. Um caso interessante foi, precisamente, o da Georgia, que elegeu como seu segundo presidente, em 1995, Eduard Shavardnadze, que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS entre 1985 e 1990. Ainda na Georgia, como noutras repúblicas, logo com a independência renasceram os conflitos étnicos. Duas regiões, a Ossétia do Sul e a Abkazia, declararam que não queriam fazer parte da nova entidade e a Abkazia chegou a reinstituir a sua Constituição de 1925 e declarar-se independente. O conflito entre estas regiões e o poder em Tiblisi, a capital, continua até hoje. A comunidade internacional não reconhece os separatistas, que são apoiados por Moscovo, na habitual atitude de Putin em desestabilizar os antigos estados da URSS que não aceitam ser controlados por ele. Se quer saber pormenores desta história, estão aqui.

No caso da Arménia, o actual presidente, Vahagn Khachaturyan, segue a política dos seus quatro antecessores de se apoiar na Federação Russa, o que não surpreende; os arménios ainda se lembram muito bem do tratamento que levaram dos turcos, e o Azerbaijão é aliado informal da Turquia. A questão entre os dois países é que uma região dentro do Azerbaijão, Nagorno-Karabakh, quer fazer parte da Arménia, porque os habitantes são arménios cristãos, enquanto os azerbaijaneses são muçulmanos. Nagomo-Karabakh fica mesmo no meio do Azerbaijão e a única ligação física à Arménia é através do corredor de Lanchin, uma estrada sinuosa numa paisagem que parece doutro planeta, rochoso e árido.

Logo a seguir às independências, em 1992, o Azerbaijão fez uma autêntica limpeza étnica no enclave, com milhares de mortos de dezenas de aldeias destruídas. Houve um cessar-fogo em 1994, mas deflagrou nova mortandade em 2020. Baku (a capital do país) diz que os arménios do enclave só têm duas hipóteses: tornar-se azerbaijões (isto é, muçulmanos), ou sair. Os do enclave não querem abandonar terras onde vivem há séculos nem converter-se a coisa nenhuma.

O conflito, ignorado pela comunidade internacional, tem sido mediado pelos russos, que têm dois mil homens no corredor de Lanchin. Contudo, por um lado os russos não têm o perfil ideal de mediadores, por outro é opinião geral de que favorecem os arménios.

O Azerbaijão é rico em petróleo e tem um exército muito maior e mais bem equipado do que a Arménia, que nem consegue enviar tropa para o enclave. São os enclavados que se defendem como podem - e realmente não podem defender-se.
Mas não desistem.

Esta semana o governo do Azerbaijão lançou uma nova ofensiva “anti-terrorista”, com as habituais razias entre a população. A Arménia salienta que não tem tropas no enclave - o que é verdade, mas não chega a ser um argumento de imparcialidade, uma vez que as poucas armas que os enclavados usam têm de vir de algum lado. Dos dois mil russos, talvez? Não se sabe.

O facto de a Federação Russa não ter conseguido apaziguar o conflito é visto como mais uma fraqueza, ou inabilidade, ou cinismo, da parte de Moscovo. Enquanto isso, continua a mortandade.

Como se irá solucionar esta situação? Ao que tudo indica, não tem solução.

Duas etnias em guerra, uma apoiada pelos pacíficos russos, outra pelos simpáticos turcos; que mais se poderia esperar?

Talvez uns discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas...