É sabido que há umas 13 mil entidades reconhecidas como grupo de lóbi junto das instituições europeias em Bruxelas e Estrasburgo. É uma atividade legal, mas os eurodeputados e os respetivos gabinetes estão obrigados, pelas regras de transparência que adotaram em enquadramento dos lóbis, a declarar todo e qualquer contacto com esses grupos de pressão. 

Ficou agora exposta uma falha nessas regras de transparência: a norma que fixa o dever de declaração de todos os contactos não inclui o governo de qualquer país fora da União Europeia.

É a brecha de que se serviu a socialista grega Eva Kaili. Ela declarava há três semanas, perante o plenário do Parlamento Europeu de que era então um dos 14 vice-presidentes, que a União Europeia não tinha «o direito moral de pretender dar lições» (ao Qatar), apresentado como modelo de “progresso social” pela forma como organizou as instalações para o Mundial de futebol.

É facto que este discurso foi rejeitado pelos eurodeputados. Mesmo os companheiros de bancada recusaram alinhar com aqueles elogios ao ultramilionário e autocrático emirado que planeou usar o Mundial como operação de lavagem de imagem.

O magistrado belga Michel Claise, que até tem fama de amante do futebol mas é também reconhecido como implacável com a criminalidade financeira e diversas formas de corrupção, já andava a investigar indícios suspeitos envolvendo esta vice-presidente do Parlamento Europeu e alguns próximos.

Escolheu o fecho das instituições europeias, ao fim da tarde da passada sexta-feira para mandar unidades especiais da polícia belga, enquadradas por juízes, para audazes operações de busca domiciliária.

A polícia tinha mandato para forçar a entrada na residência de gente da elite europeia, no caso uma vice-presidente do parlamento e, entre outos, um ex-líder sindicalista europeu.

A ousadia do magistrado Claise levou a evidências que corroboram a suspeição: a senhora vice-presidente tinha em casa, ao que relata o respeitável diário belga Le Soir, 750 mil euros, em notas de banco. Foi levada ao magistrado Claise para explicar a origem daquele estranho dinheiro em casa. Kaili não arranjou explicação razoável para aquele tanto dinheiro numa mala e ficou detida. A imunidade parlamentar caiu perante o quadro que configura flagrante delito.

O pequeno mundo político europeu de Bruxelas (e Estrasburgo) ficou em estado de choque. É de reconhecer que não houve demoras na resposta política, ninguém ficou à espera de vereditos da justiça: a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, retirou imediatamente o mandato a esta vice-presidente, e o PASOK, partido socialista grego, logo na hora seguinte excluiu a deputada tóxica.

Este Qatargate acontece num começo que era suposto ser de aplausos no Parlamento Europeu, com os eurodeputados deslocados para a sede original e mais simbólica, em Estrasburgo. Este caso, ainda em fase inicial de investigação, tem o efeito de terramoto que abala o topo político da Europa.

A União Europeia reforçou nos últimos anos as regras de transparência. A Comissão Europeia, presidida por Ursula van der Leyen, tem-se mostrado muito aplicada no combate ao uso desviado de fundos europeus. 

A Bruxelas europeia decidiu, com coragem, iniciar um braço de ferro com a Hungria de Viktor Orbán,  por falta de compromisso com os compromissos éticos da democracia europeia.

As operações de compra e venda de interesses  entre o Qatar e a agora ex-vice-presidente do PE (quem mais?) oferecem ao chefe húngaro argumentos para desacreditar a democracia da União Europeia.

Problema ainda maior: o descrédito que deixa de rastos a confiança em quem proclama a grandeza dos valores europeus. A ex-senhora vice-presidente prestou um serviço certamente bem acolhido pelo extremismo que ataca o modelo europeu. Tanto Putin como a liderança chinesa também devem estar a rir-se.

Há outro lado nesta história: por onde mais terá entrado a operação qatari de compra de gente influenciadora?