Pode parecer uma pergunta de fácil resposta. Mas exige – ou pelo menos aconselha-se – um olhar mais cuidado sobre, afinal, do que se trata essa “coisa” a que chamamos Europa, mais corretamente uma organização internacional designada por União Europeia (“UE”), já que muitos países europeus não fazem dela parte.

Vamos votar, ou já votámos, em deputados para o Parlamento Europeu  (“PE”). Mas é só isso? Trata-se apenas de escolher pessoas que vão sentar-se num hemiciclo (na verdade, em dois, em Bruxelas e Estrasburgo) durante cinco anos?

E o que é afinal o Parlamento Europeu, para que serve, de onde vem a ideia peregrina de eleições em todos os países que integram a organização?

A resposta, em duas partes.

A União Europeia: uma velha senhora

Falta menos de um ano para a comemoração simbólica do 75º aniversário da UE; foi em 9 de maio de 1950 que o ministro dos negócios estrangeiros francês, Robert Schuman, pronunciou o discurso que desencadeou o processo político de resultariam as primeiras comunidades europeias – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, em 1951, Comunidade Europeia da Energia Atómica e Comunidade Económica Europeia, esta a percursora direta da UE, em 1957.

E o que fez esta velha senhora, por que caminhos andou, que voltas, contravoltas, recuos e avanços protagonizou, nesses 75 anos?

Desde logo, conheceu todas as gerações desde o tempo dos “baby boomers” (nascidos entre 1945 e 64) aos “Alfa” (após 2010), passando pelas gerações X, Y e Z (de 65 a 84, 85 a 99, depois de 2000, respetivamente).

A Europa dos Seis – os fundadores das Comunidades Europeias ((Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Países Baixos) - tinha, à data de 1950, cerca de 176 milhões e 500 mil habitantes. A atual União, mesmo tendo em conta a saída dos 67 milhões de pessoas do Reino Unido, conta com sensivelmente 450 milhões de habitantes.

Por falar em Reino Unido, foi em 1973 que o país se juntou aos seis Estados-membros fundadores. Com ele aderiram Dinamarca e Irlanda e não aderiu, por decisão em referendo nacional já após as negociações de adesão, a Noruega.

A Europa tivera uma década de 60, em que concretizou o seu mercado comum (ainda não mercado interno), bastante acidentada. Uma significativa crise política, em 1965, que ficou conhecida como “da cadeira vazia”, relacionada com os poderes da Comissão Europeia, por alguns países (já então) julgados excessivos, chegou a ameaçar o seu funcionamento. Mas a economia “corria” bem, o conjunto dos países que a constituíam desenvolvia um Estado social de bem-estar eficiente, o continente, ainda dividido em duas partes, vivia um período de desenvolvimento e crescimento invulgares – foram  os “30 glorieuses années”, 30 anos gloriosos em que o céu parecia o limite para as democracias ocidentais, que se viam a si próprias como o paradigma do modelo político do futuro, fase final da consolidação de um sistema político, assente na democracia e no Estado de Direito, que todos os países do mundo viriam a (ser obrigados a) imitar.

E isso, apesar da ameaça da guerra fria e de um impensável (mas sempre pensado) holocausto nuclear; ou, talvez, graças a eles.

Trinta anos gloriosos que, ao mesmo tempo, serviam de legitimação para um processo político de integração sobretudo económica, baseado num sistema de funcionamento sui-generis, assente num misterioso mas sempre invocado “método comunitário”, cujo epicentro era um executivo todo-poderoso (ainda e sempre a Comissão Europeia), mas que contava já com um parlamento, o PE, integrado por deputados indicados pelos diferentes Estados-membros, mas ainda com pouco poderes e, sobretudo, com uma escassa capacidade de escrutínio das restantes instituições.

Uma organização que se baseava na delegação – ou transferência?, o debate começou logo na origem – de poderes soberanos, e que contava ainda com um judiciário independente, o Tribunal de Justiça, cujas decisões, a “famosa” jurisprudência europeia, eram fonte de lei, com primado sobre as ordens jurídicas nacionais, não podia deixar de suscitar sérias questões de legitimidade.

Com todos esses poderes e assente na lógica de repartição de competências entre os níveis nacionais soberanos e um plano superior, supranacional, não espanta que desde cedo se tivesse colocado a questão da legitimidade dessa estranha entidade política a que, nos anos 70 do século XX, ainda se usava chamar, simplesmente, de CEE.

E não foi por isso por acaso que, nessa mesma década, se tenha desenhado e depois consumado em 1979, a eleição direta e universal, dentro do bloco, do primeiro PE com deputados escolhidos pelos europeus. A legitimação pelos resultados, ainda hoje tão comum em tantos países, deu o lugar à legitimação (pelo menos parcial) por via do voto.

Com deputados a integrar grupos políticos europeus, o PE iniciou um caminho, a partir de então seguro, progressivo, irreversível, para a assunção de cada vez maiores poderes. E o simbolismo não faltou, quando uma sobrevivente de Auschwitz, Simone Veil, foi escolhida para primeira Presidente da instituição agora sufragada por todos os europeus.

Nas duas revisões dos Tratados originais que se sucederam entre 1986 e 1992, o PE tornou-se um verdadeiro colegislador e assumiu reais poderes no contexto institucional europeu.

No Acto Único, assinado em 1986, foi relançado o mercado comum, tornando-o num verdadeiro mercado interno europeu para a livre circulação de mercadorias, prestação de serviços, de pessoas e capitais; e em Maastricht, assinado em 1992 (talvez a mais importante das reformas do direito originário dos Tratados), instituída a cidadania europeia, a união económica e monetária, de que resultou o euro, a confirmação da política de coesão económica e social, novas políticas em todos os domínios, incluindo a política externa e de defesa, reconhecimento da centralidade dos direitos humanos e mecanismos para proteger a democracia.

Nesta nova realidade europeia, a que muitos chamaram o advento da Europa constitucional, a importância de uma Assembleia de representantes dos agora chamados cidadãos europeus, com direitos próprios, ganhou uma nova dimensão e assumiu-se como tal. Colegislador, a par do Conselho de Ministros, com deputados diretamente eleitos, o Parlamento Europeu trajou vestes de arauto e garante do Estado de Direito no seio da própria União e nas suas relações com o mundo.

Parecia confirmar-se a Europa do “fim da história” (Fukuyama), na esteira da queda do “Muro” e de uma pretensa supremacia moral do Ocidente, confirmada pelo desaparecimento de uma cena internacional assente no bipolarismo (Este contra Oeste, comunismo contra capitalismo, URSS contra USA, maus contra bons).

Entretanto, a UE crescera, de nove para dez membros (Grécia, 1981), para doze (Portugal e Espanha, 1986), e continuou, em 1995, para quinze Estados-membros (com a adesão da Áustria, Finlândia e Suécia, e a Noruega, pela segunda vez no último minuto, a decidir ficar de fora).

Já com um aviso feito por um cientista político de seu nome Samuel Huntington, a ameaça da guerra das civilizações como pano de fundo e o 11 de setembro como aviso e nota de risco, a entrada da União no século XXI fez-se com estrondo – assente, não só, numa nova realidade monetária, o euro, como moeda aspirando à centralidade global (e um passo mais na cedência de soberania por vários países europeus, neste caso em matéria de política monetária) -, também assente numa nova revisão do Tratado (o Tratado de Amesterdão), mas sobretudo num novo e ousado paradigma de integração:

O espaço de liberdade, segurança e justiça, com uma cooperação judiciária e policial entre os Estados-membros em matérias relacionadas com a livre circulação, segurança no espaço europeu, aplicação de aspetos concretos do direito penal e do direito civil nesse mesmo espaço.

Imigração, asilo, ameaças de natureza criminal, os grandes tráficos, o terrorismo, os mandados de detenção europeus, a harmonização das regras processuais em inúmeros domínios, a cooperação com os países terceiros nesses domínios, passaram a ser realidades geridas em comum, de acordo com regras da União. Foi estabelecido um mandado europeu de captura, instituídas entidades como o Frontex – para gerir as fronteiras externa da União – e, em matéria de defesa, outro domínio desenvolvido no âmbito das relações externas, a União começou a levar a cabo, sob a sua égide e bandeira, missões em países e territórios terceiros, de manutenção e estabelecimento da paz.

Nesse contexto, o Parlamento Europeu e os seus eleitos, investidos nas vestes de legisladores – no âmbito de um processo que viria a chamar-se de “processo legislativo ordinário” após a aprovação da última revisão em data dos Tratados originais, o Tratado de Lisboa, assinado em dezembro de 2007 – tinham uma responsabilidade cada vez maior. E, contudo, nas sucessivas eleições europeias, em 1979 e, depois de 1986, já com Portugal como membro, os números da participação baixaram sem cessar. Nada parecia dissuadir os políticos que se apresentavam a cada uma dessas eleições de debaterem apenas temas nacionais, e nada lograva convencer os cidadãos, sem saberem bem em que é que estavam verdadeiramente a votar, a acorrer massivamente às urnas.

No interím, em 2001, no Tratado de Nice (entre Amesterdão e Lisboa) e depois na capital portuguesa, foram reforçados os poderes do PE. E aprovada a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, vinculativa para os Estados-membros quando aplicam direito da União.

Já depois, no século XXI, a UE viveu momentos muito difíceis, tantos que custa enumera-los:

O rescaldo do 11 de setembro e as suas sequelas, nomeadamente os atentados terroristas que assolaram a Europa – e o resto do mundo, é certo -, em Espanha, Reino Unido, França, Alemanha; a crise das dívidas soberanas, que culminou com planos de resgate impondo obrigações severas aos países assistidos; um fluxo maciço de migrantes, ou refugiados, ou ambos, entre 2014 e 2016; a primeira invasão da Ucrânia (a Crimeia); o Brexit, a pandemia, a segunda invasão da Ucrânia, Gaza.

Nunca as ameaças foram tantas, nunca a importância de respostas comuns foi tão clara – porque, na maior parte dos casos, só em comum essas ameaças podem ter respostas efetivas, eficazes e eficientes. E, neste contexto, é cada vez mais relevante o papel dos deputados europeus.

Eles votam as leis, escrutinam o trabalho e as decisões das restantes instituições, com particular destaque para a Comissão Europeia, são guardiões dos princípios europeus, arautos, num areópago que cresce em importância e por onde passam grandes figuras da política e economia global, das grandes questões e tensões dos nossos dias, são a voz dos que, numa Europa que também se integra cada vez mais, ainda que por vezes pareça à beira da desintegração, não têm intervenção direta na governação em comum.

São a voz e a vontade expressa dos cidadãos. Mas será que estes estão dispostos a deixar-se representar por uma velha senhora de 75 anos (em breve), que por vezes parece tão distante deles?

É o que veremos, já a 9 de junho.

Mas é só isso? Não, não é só isso, ainda que isso seja fundamental

Como já referido, os eleitos agrupam-se por grupos políticos e não por nacionalidades.

O que significa que, mesmo se a relação com o país de origem (não esquecendo que um dos direitos de cidadania europeia é justamente o de qualquer europeu poder ser eleito num país distinto do seu) se mantém forte ao longo da legislatura, também é verdade que a dimensão ideológica, a afiliação ao grupo político no PE e até ao partido político que o origina (ou vice-versa, é matéria discutível), são parte importantíssima do desempenho dos deputados europeus.

Trocando por miúdos:

Ao ser eleito num determinado partido, que se integra posteriormente num grupo político europeu, os deputados são chamados a participar na política de alianças – de coligação ou de acordos, como lhe preferirmos chamar – com outros grupos. Ajudam a decidir, seja genericamente no plano da estratégia, seja proposta a proposta, com quem o seu partido coopera e com quem giza as políticas europeias relevantes.

E por que razão é isso relevante? Após tantas décadas de governação ao centro, com uma espécie de aliança perpétua entre o centro-direita, isto é, o Partido Popular Europeu (PPE) e o centro-esquerda dos Socialistas e Democratas (S&D), com a participação ocasional, nos últimos anos, dos liberais do Renew, tudo pode agora mudar. Depende naturalmente dos resultados, caso a direita mais à direita consiga assumir na nova assembleia uma posição mais ou menos preponderante; nesse caso, a Europa conhecerá uma nova realidade, muito distinta da atual.

É uma questão de números, sabendo-se que a maioria absoluta no PE se consegue com 361 deputados (em 720 eleitos). E é uma questão – talvez seja sobretudo “a” questão – de perceber até que ponto a extrema-direita europeia, seja ela ideológica, meramente populista, nacionalista ou eurocética, conseguirá reunir-se num grande grupo político no PE, que venha a influenciar, de forma determinante, porque radical na sua essência em relação a políticas fundamentais, o rumo da política europeia, como por exemplo:

Em matéria de imigração e asilo (não podia deixar de ser o primeiro exemplo); a política europeia de defesa; a relação com a Ucrânia; o ambiente e a transição energética; os alargamentos, com nove países já com estatuto formal de candidatos, abrangendo a quase totalidade dos países dos Balcãs e vários países de leste; a reforma económica, incluindo a política industrial, a governação económica e as políticas relacionadas com a competitividade e com o mercado interno em especial; a transição digital.

Mas, sobretudo, a incógnita sobre que nova visão para uma Europa que se pretende integrada e que essa nova realidade política pode querer desintegrada – senão, pergunto, alguém que me expliquem por favor, o que quer então dizer o chavão “Europa das Nações”? Uma Europa de novo com fronteiras, fragmentada e dividida, a decidir tudo por unanimidade e, portanto, sujeita (outra vez!) à lei dos mais fortes e dos mais ricos?

Claro que se, à direita do PPE, se mantiver a divisão entre os partidos geralmente designados de populistas, se a separação entre os Conservadores e Reformistas e o grupo da Identidade e Democracia se fizer pelas linhas de fratura anunciadas por Ursula von der Leyen – democracia, apoio à integração europeia, apoio à Ucrânia – então talvez possa ser evitado o abalo sísmico político, de grandes proporções, que se anuncia.

Mas esta pode ser, de facto uma escolha decisiva no nosso tempo, e no tempo de vida da construção europeia.

Os eleitores vão decidir ainda mais: vão decidir quem será o próximo presidente da Comissão Europeia. O sistema conhecido como dos candidatos principais (“spitzenkandidaten”) prevê que o candidato apresentado pelo partido político europeu mais votado será aquele que o Conselho Europeu deve apresentar ao PE para ser por este escrutinado – e terá de obter maioria absoluta dos deputados (os tais 361 votos).

De acordo com as sondagens (mas as sondagens…), o PPE deverá vencer as eleições europeias, restando saber por que diferença. Em 2019, Ursula von der Leyen – que foi eleita apesar de não ser candidata principal do PPE, numa clara violação do sistema dos candidatos principais -, venceu a votação no plenário com uma diferença de apenas nove votos.

Tudo estará por isso em aberto na sessão plenária do PE que decorre na semana de 16 de julho, e em que se espera que tenha lugar o voto relativo à próxima presidência da Comissão. Caso falhe a eleição da incumbente, o Conselho Europeu terá o prazo de um mês para propor novo nome, no que seria uma crise institucional inédita e grave.

Não é só o cargo da presidente (ou do presidente) da Comissão Europeia que está em causa; desde logo, porque será ele ou ela a escolher a equipa de comissários, naturalmente em coordenação com os Estados-membros, e sobretudo que pelouros cada um terá. Mas também porque, numa espécie de dominó institucional, estão igualmente em causa os nomes dos responsáveis das várias instituições europeias:

Desde logo, o presidente do Conselho Europeu, com as hipóteses, ainda válidas, de nomeação de António Costa; estão previstas duas reuniões em junho, num jantar dia 17 e numa Cimeira formal entre 27 e 28. A eleição faz-se por maioria qualificada dos membros do Conselho Europeu, entrando o novo titular em funções em dezembro deste ano.

O presidente do Parlamento Europeu, que será com grande probabilidade a atual incumbente, a maltesa Roberta Metsola, por mais dois anos e meio.

O Alto Representante para a Política Externa e de Segurança, o “senhor negócios estrangeiros” da União, em substituição de Borrell.

E até, numa espécie de jogo de espelhos exigente e complexo, a escolha do (próximo) secretário-geral da NATO poderá estar condicionada por esta dança de cadeiras (ou de nomes).

Tanta coisa, afinal, em jogo, numas simples eleições europeias. Mas afinal, as eleições europeias nunca foram simples. E parece, espera-se que seja mais do que uma ilusão, que este ano os eleitores europeus o compreenderam. Até porque, pelo menos em Portugal (noutros países não foi tanto assim), este ano discutiu-se verdadeiramente a Europa.

Talvez a velha senhora ainda venha a surpreender muita gente.