Não é a primeira vez que um cidadão chamado a uma Comissão da Assembleia da República faz dos deputados gato-sapato e joga com a fraca legislação (tanto do país, como das comissões) para dizer o que lhe apetece, ou não dizer nada. Assim, sem pensar muito, lembro-me das audições de Ricardo Espírito Santo, Manuel Dias Loureiro, João Rendeiro e do Major-General Luís Nunes da Fonseca, mas a lista é extensa e a memória limitada. Contudo, em termos de desfaçatez – “deboche” é a expressão brasileira que melhor define – a prestação de Berardo só terá comparação com a de José Oliveira e Costa, o político e administrador do BPN. Não foi ele que, se a memória não me falha, que até comeu uma sanduíche durante a audição? Também exibiu o sorriso arrogante do espertalhão que sabe que não são aqueles tansos que o irão entalar. (Desculpem a linguagem, mas isto é uma coluna de opinião, posso dar-me certas liberdades...)

As comissões são muitas e têm nomes que não cabem num formulário informático. Esta, com a qual Berardo gozou descaradamente, chama-se “II Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco”.

Também em termos de desfaçatez, e fora das audiências às impotentes comissões, não faltam inquiridos, ou suspeitos, ou duvidosos, a auto-glorificarem-se numa exposição pública que arrepia os cidadãos mais sensíveis à pouca-vergonha. Como o já citado João Rendeiro, que depois de ganhar 2,8 milhões de euros com a falência do BPP, e ter recebido uma pena suspensa, mantém um blogue, “Arma Crítica”, onde dá conselhos empresariais e faz comentários sobre o estado da economia nacional.

Cada vez que se baixa a um patamar de baixaria, a opinião pública acha que não é possível descer mais baixo – para, na semana seguinte, novo patamar, impensável, ser atingido, sem quaisquer consequências para os ofensores ou para a República. O que leva a que pessoas ordeiras e respeitadoras da ordem instituída comentem, à boca pequena, que “o que faz falta é a Carbonária”. Os mais novos e menos conhecedores da História certamente que não percebem este comentário desesperado. Pensarão talvez que se trata de uma receita de massa italiana. Mas não. O comentário é um apelo para uma impensável, ou pelo menos improvável, solução radical para a grande corrupção que se institucionalizou no país.

A Carbonária foi uma sociedade secreta fundada em Itália na altura das Invasões Francesas e que chegou a Portugal em 1896. Ligada à maçonaria, tornou-se, após o 5 de Outubro de 1910, o braço armado do Partido Democrático, encarregue das operações violentas que os deputados do partido, burgueses bem instalados na vida e integrados no sistema político legal, não podiam aprovar publicamente. Pode fazer-se uma boa comparação com a situação na Irlanda do Norte, quando os independentistas tinham (e têm) um partido oficial, o Sin Fein, e uma organização terrorista, o IRA.

Vem a propósito uma muito citada afirmação do rei D. Carlos: “Portugal é um país de bananas governado por sacanas.” Na altura, a frase tanto foi usada contra o rei, por desprezar os seus súbditos, como a favor dele, por ter consciência da situação do país. O facto é que nem todos eram bananas e alguns deles, membros da Carbonária, executaram-no em 1908. (Por acaso o assassino, Manuel Buiça, usou uma Winchester 351 comprada, diz-se, pelo visconde de Pedralva, ou pelo visconde da Ribeira Brava, que odiavam o rei e não a instituição real. Ribeira Brava é o tetravô de Isabel de Herédia, esposa de D. Duarte de Bragança, mas isso é outra história...)

Voltando ao país de bananas; não é de hoje a frustração que os portugueses sentem com os seus governantes, nem é exclusiva desta República. Um comentador incontornável da realidade nacional é Eça de Queiroz, citado até à exaustão. É ele que coloca estas palavras na boca da sua personagem, o Conde de Abranhos: “Eu, que sou governo, fraco mais hábil, dou aparentemente a soberania ao povo. Mas como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito...”

Isto, em 1872. Durante a monarquia, revezavam-se os senhores na governação, explorando a ignorância popular que zelosamente mantinham. Com a I República, novos senhores chegaram ao poder, instituindo uma nova rede de conivências e interesses. A Carbonária, que tinha sido útil para fazer a Revolução do 5 de Outubro – dia em que os próceres do Partido Republicano se refugiaram nuns banhos públicos, não fossem as coisas correr mal... – passou a ser uma força de terror do Partido Democrático e de repressão dos movimentos operários que entretanto despontavam.

Os carbonários, burgueses mínimos (caixeiros, lojistas, operários especializados), não gostavam do socialismo. Tal como as SA de Hitler o ajudaram a subir ao poder e depois se tornaram incómodas para a nova ordem, também a Carbonária, atingido o seu objectivo, só causava problemas. A II República, vulgo Estado Novo, acabou com ela. A ideia de que a justiça popular devia actuar quando a Justiça institucional não o conseguia fazer, que era no fim de contas a ideia carbonária, estava ultrapassada. O Estado Novo montou o seu braço armado próprio, a PVDE, depois PIDE, depois DGS.

Dizem os saudosos do antigo regime que no Estado Novo não havia roubalheira nem pouca vergonha. Trata-se de uma visão romântica e historicamente irreal, como se sabe. Salazar, Tenreiro, Tomaz e outros apaniguados irredutíveis não roubavam, é verdade, porque achavam que ficariam no poder até à morte; não precisavam de pensar na reforma. Mas permitiram um sistema de roubo institucionalizado, sob a forma de restrições monopolísticas à liberdade de estabelecer um negócio. A chamada Lei do Condicionamento Industrial, entre outra legislação, colocava na mão dos grandes capitalistas toda a produção nacional, enquanto restrições aduaneiras ferozes os protegiam da concorrência de produtos estrangeiros melhores e mais baratos. Não se podia abrir uma fábrica ou uma loja, sem o aval do sistema, favorecendo artificialmente os afectos ao regime e os protegidos pelos interesses dominantes. A censura prévia se encarregava de impedir que roubalheiras, corrupção e outros escândalos chegassem ao conhecimento público. “Bons tempos”, em que a informação passava pelo funil estreito da comunicação social controlada. Quem descobrisse alguma injustiça e abrisse a boca, era comunista, com certeza...

Esse regime caiu de podre, e assim chegamos à III República, esta nossa democracia livre, que não tem nem DGS nem Carbonária, em que todos podem dizer tudo o que quiserem (e também fazer, desde que seja em grande escala...). A Constituição de 1976, lavrada decerto com a melhor das intenções por uma Assembleia eleita por 91,66% dos inscritos, contém em si uma armadilha que ninguém viu na altura, tal era o entusiasmo com a liberdade que as pessoas nunca tinham sentido. Apostava-se na igualdade, sem imaginar que um dia alguns seriam mais iguais do que os outros.

Eça de Queiroz, ao dissecar a sociedade da segunda metade do século XIX, mantém-se actual não porque fosse presciente, mas porque a mesma sociedade continua a existir na primeira metade do século XXI. Mas há diferenças; o sistema de exploração e inimputabilidade aperfeiçoou-se, digamos assim. Dizia Eça: "O povo paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam (...) Paga tudo, paga para tudo. E em recompensa, dão-lhe uma farsa.”

Ora, a situação já não é assim. O povo já não reza, pelo menos não tanto como rezava. Os ministros podem governar ou não, mas os deputados legislam com certeza. A questão é o que legislam. As leis são feitas em escritórios de advogados que por acaso também são deputados e que se preocupam sobretudo com os seus clientes. E os que não são advogados e/ou não têm clientes, devem obedecer ao partido, uma vez que são eleitos por ele (é o partido que os coloca nas listas) e não pelos eleitores (que se limitam a avalizar as listas). Quanto ao resto, mantém-se: o povo paga tudo e para tudo, inclusive para jogadas que nem se sonhavam no século XIX. E a recompensa continua a ser uma farsa, embora cada vez mais pareça uma tragédia.

O sistema é tão bem feito que não contém possibilidade de auto-regeneração. Para fazer uma Revisão Constitucional – digamos, para fazer os deputados responsáveis perante os eleitores e independentes dos partidos e dos clientes – é preciso uma maioria de dois terços dos deputados. Ou seja, 154 dos actuais 230. Ora, porque mudariam eles um sistema que os favorece?

É no Parlamento que reside o epicentro da situação; é lá que se faz a legislação que será usada pelo Poder Judicial, e ele (o Parlamento) que se mantém a confiança que sustenta o Executivo. Não custa perceber que a tragédia que foi nos apresentada pelo Comendador Joe Berardo é, em última análise, o resultado dum encadeamento de farsas originárias no Poder Legislativo.

Não podendo fazer uma mudança constitucionalmente, restaria uma revolução. Ora, não há nenhuma revolução no horizonte terrestre, nem mesmo no espaço sideral mais próximo. Felizmente, diríamos nós, porque, apesar dos pesares, esta III República continua a ser a melhor coisinha em que vivemos até hoje.

Então como se podem punir os bandidos? É aqui que entra a pergunta sobre a necessidade duma Carbonária – um grupo secreto e ilegal que faria a justiça que a Justiça não pode ou não quer fazer. Claro que é uma pergunta retórica. Somos europeus, a civilização mais avançada que se conhece. Nunca poderíamos aceitar uma solução terrorista e à margem de leis que, boas ou más, levaram séculos a estabilizar. A Carbonária representa o passado violento do olho por olho, dente por dente. Já ultrapassamos essas atitudes violentas a favor do Estado de Direito. Em 2013, mais de um milhão de portugueses foi para a rua para protestar contra a política económica. E mesmo um assunto tão pueril como a vitória dum clube de futebol acabou de provocar uma concentração de mais de duzentas mil pessoas no centro de Lisboa.

A sociedade civil precisa de, pacificamente, fazer com que a justiça funcione. Como é que isso se faz? Discutindo, exigindo, fazendo parte de grupos que acompanham o trabalho que é feito por deputados, governantes, magistrados, no limite para que garantam aquilo que é essência de uma democracia saudável: Justiça.