À primeira vista, a invasão das instalações dos Três Poderes por um grupo de arruaceiros, parece uma cópia tropical do ataque ao edifício do Congresso norte-americano. Em ambos os casos, assistimos em directo à contestação violenta dos resultados de uma eleição democrática. A descrição pormenorizada de ambos os acontecimentos está feita e não vale a pena repeti-la aqui. O que vale a pena é analisar as diferenças, que são muitas, e refletem duas sociedades com idiossincrasias distintas.

Uma primeira evidência, no campo dos factos, é a narrativa da situação. Nos Estados Unidos, houve uma tentativa de golpe de Estado organizada de cima para baixo por um órgão de soberania ainda em exercício.

O Presidente e os seus conselheiros, formais e informais, planearam em pormenor o descumprimento da Constituição, contestando os resultados nos tribunais, partindo do pressuposto que os resultados da eleição tinham sido falsificados - a “Big Lie”.

Como último recurso, caso perdessem judicialmente, como aconteceu, conceberam uma revolta popular que impedisse in-extremis a certificação oficial do voto eleitoral, cometendo um acto constitucionalmente ilegal. É o que se pode chamar de “crime organizado”; as conclusões da Comissão de Inquérito Parlamentar, recentemente publicadas, não deixam margem de dúvidas quanto à estrutura hierárquica do golpe, dirigido pelo próprio Presidente e com uma cadeia de comando definida actuando coordenadamente.

No Brasil, depois dos resultados certificados oficialmente, e sem coordenação directa de uma estrutura operacional dirigida pelo Presidente Bolsonaro, grupos de interesses sem ligação formal entre si (quais, em breve saberemos) promoveram uma agitação popular com o intuito de fazer as forças armadas intervir. Não há indícios de que Bolsonaro e os seus assessores tenham organizado um golpe, limitando-se a contestar os resultados de uma forma veemente, porém vaga. Depois de terminado o apuramento, o que o agora ex-Presidente fez, notoriamente, foi não fazer nada, remetendo-se ao silêncio. Antes da tomada de posse do sucessor, abandonou o país - segundo uns para não estar presente no acto de posse de Lula, segundo outros para fugir aos processos inevitáveis que a sua gestão dolosa poderá desencadear.

Portanto, os factos não foram exatamente a mesma coisa, e as diferenças são importantes.

Quanto às intenções, os insurrectos norte-americanos pretendiam efectivamente impedir a formalização do acto constitucional de transmissão de poderes - que seria feito pelo vice-Presidente, Mike Pence - ameaçando fisicamente os membros do Congresso reunidos para a certificação. Daí que se possa falar de uma insurreição, ou revolta. Quanto à multidão que invadiu os edifícios oficiais de Brasília, esta não tinha uma agenda definida para impedir a oficialização do processo, que, aliás, tinha sido feito dias antes. O que pretendia era protestar contra o resultado certificado, talvez com a esperança de que a agitação levasse as forças armadas a intervir e, aí sim, dar-se um golpe de Estado. Esta possibilidade era praticamente impossível, uma vez que as forças armadas já tinham persistentemente afirmado que não interviriam, e, portanto, tratou-se mais de um acto descabelado de desespero do que de uma tentativa racional de impedir o facto consumado.

Estas discrepâncias expõem as diferenças culturais entre os dois países. (Devo dizer que residi 10 anos no Brasil e outros 10 anos nos Estados Unidos, pelo que tive contacto directo com uns e com outros.) São países violentos - os índices de criminalidade confirmam - e profundamente divididos política e ideologicamente. Mas a sociedade norte-americana é racista, no sentido literal do termo, enquanto a sociedade brasileira é  “racista economicamente”, ou seja, classista. Já lá vamos.

Nos Estados Unidos, as diferentes etnias vivem em mundos paralelos, com uma separação informal e muitas vezes violenta entre elas. Brancos, asiáticos, negros e latinos não se misturam mais do que o minimamente necessário (há excepções, claro). Mesmo entre brancos de diferentes origens há antipatias - lembro-me de que, em Nova Iorque, os polacos e os italianos, ambos brancos e católicos, vivem em bairros diferentes e mal se suportam.

Os brancos mais radicais formam grupos de milícias armadas, permanentemente acossados por aquilo a que chamam “the great replacement”, a substituição da sua superioridade numérica pelas outras etnias. Politicamente são contraditórios, misturando uma ideologia autoritária com o direito à liberdade individual total. Consideram o “american way of life”, isto é, a democracia consagrada na Constituição, como uma superioridade nacional branca, sempre ameaçada pela infiltração das etnias “inferiores”.

O exemplo mais flagrante desta maneira de pensar vê-se no modo como as forças policiais tratam os negros, mas as atitudes segregacionistas são generalizadas e impossíveis de ignorar. Acontecem mesmo nas cidades mais cosmopolitas e etnicamente diversificadas, como Nova Iorque ou Los Angeles. Se lermos a história dos direitos humanos norte-americanos, verificamos que a igualdade racial tem sido lenta e complicada, com avanços e recuos. Todos recordam as lutas pelos direitos dos negros na década de 1960, lideradas por Martin Luther King - que foi assassinado.

Donald Trump, cujas afirmações racistas, misóginas e classistas estão documentadas, institucionalizou esse racismo branco, expondo “oficialmente” ódios envergonhados e os receios da classe trabalhadora branca, a mais “ameaçada” pelo crescimento das outras etnias. Ao mesmo tempo que dividiu a frágil unidade nacional - até hoje cerca de 50% da população gosta dele -, deu carta branca aos grupos supremacistas brancos. Barack Obama tem razão, quando afirma que a eleição de Trump terá sido, em parte, reacção a um presidente negro. Em conclusão, não foi difícil a Trump chamar esses movimentos ultra-radicais a Washington para “defender a liberdade”. Simultaneamente, uniu os receios dessa classe baixa ao dos capitalistas multi-milionários que acham que os direitos da classe são ideias “socialistas” a combater. Parece confuso, mas é assim que funciona.

No Brasil, o racismo étnico é praticamente impossível, dado que as etnias misturam-se há gerações. Existem infinitas combinações de negros, asiáticos, índios e brancos, a um ponto que seria impossível classificá-los. Também, e muito naturalmente, os preconceitos étnicos são atenuados pela natureza fraternal da população. É o único país que conheço em que árabes e judeus se dão bem, fazem negócios sem problemas e até se misturam. Geralmente, faz-se humor com as diferenças; sempre que me identificavam como português contavam-me as tradicionais anedotas sobre os “patrícios” - num tom cúmplice, sem maldade. Nos Estados Unidos chamar “nigger” a um negro é um insulto, no Brasil chamar “japa” a um oriental é uma demonstração de carinho.

Onde há preconceito no Brasil é no que toca a nível de rendimentos. “Odeio pobre” é uma afirmação corrente da classe média. A pobreza, provocada pela falta de oportunidades - o ensino é deficiente, o “elevador social” áspero - é vista como uma inferioridade. Se os nordestinos são desprezados, não é por serem uma etnia mista (índios e negros, basicamente), mas porque são pobres. Por outro lado, a violência é provocada pela pobreza, não pela ideologia. Os brasileiros assaltam e matam com facilidade porque têm fome. A corrupção é endémica a todos os níveis sociais porque o dinheiro nunca é suficiente.

Então, o preconceito contra Lula da Silva é sobretudo porque ele é um pobre que conseguiu subir. Chamar-lhe “ladrão” esconde apenas a inveja de que ele teria conseguido roubar impunemente - o que, aliás, não se provou. Chamar-lhe “comunista” é porque o comunismo é visto como a negação da possibilidade de enriquecer. São os pobres, que muitas vezes têm de roubar para viver e que vêem o comunismo como a anti-religião, que formam as legiões que atacaram Brasília.

Sim, porque no Brasil há que levar em conta a religião. Os brasileiros são místicos, e as igrejas evangélicas souberam aproveitar muito bem essa religiosidade para enriquecer fabulosamente, ao mesmo tempo que defendem os valores mais conservadores. Não é por acaso que num país onde se provocam interrupções voluntárias da gravidez em quantidades industriais o aborto é criminalizado. Onde as uniões de fato são correntes, o casamento é louvado. Onde a homossexualidade é aberta, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é proibido.

Foi esta massa inorgânica, mística e ingénua que levou Bolsonaro ao poder, como reacção ao suposto materialismo e comunismo do PT. O argumento de que os petistas são, ou foram, uns ladrões, é hipócrita, contraditório, num país em que roubar é uma necessidade de sobrevivência e a corrupção sempre existiu a todos os níveis.

Os que agora ainda defendem Bolsonaro não constituem uma conspiração para perverter a Constituição nem um grupo de direita libertária. São os eternos sonhadores que esperam um país melhor e uma vida mais próspera para eles próprios, e não fazem a mínima ideia como isso é possível. Os evangélicos e os exploradores financeiros saberão explorar esse sonho. No entanto, é preciso salientar, os pastores evangélicos estão prontos a aceitar o novo governo “esquerdista”, desde que não lhes toque na fortuna e nos princípios.

Se Lula e os seus aliados - que neste governo vão até à social-democracia “burguesa” - souberem domar o ódio sem sentido, acalmar os receios infundados, governar com menos roubalheira e subir o nível de instrução e rendimentos dos mais pobres, conseguirão prevalecer. É uma agenda pesada, difícil, mas possível.

E o chamado “bolsonarismo”, que é mais um oportunismo tático do que uma ideologia, sofreu um rude golpe com os acontecimentos de Brasília. Há muitos bolsonaristas que não se revêem na invasão dos edifícios institucionais e na depredação do património histórico.

Em termos pragmáticos, e igualmente  idílicos, tenho mais esperança para o Brasil do que para os Estados Unidos. Enquanto o executivo lulista tem espaço de manobra, os radicais trumpistas mostram-se cada vez mais persistentes. Veja-se os compromissos que o Representante Kevin McCarty teve de fazer para ser eleito “speaker” da Câmara dos Representantes.

Mas a esperança, a última que morre, é apenas um acto de fé.

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