Escravatura é, como intuitivamente se percebe, uma pessoa ser obrigada a trabalhar, confinada e sem remuneração. Todas as civilizações que conhecemos a praticaram, quer arrebanhando prisioneiros de guerra, quer criando servidão por dívidas e crimes, ou ainda como “produto” comercial.

Para nós, ocidentais, a escravatura está ligada ao racismo, especificamente em relação aos negros, fortes para o trabalho e impossibilitados de se revoltar; mas a “instituição”, em termos universais, não era, nem é, inerentemente racista; é mais xenófoba, digamos, no sentido em que os outros, mesmo se etnicamente iguais, são escravizáveis se for possível escravizá-los. Do mesmo modo, não está ligada exclusivamente ao trabalho braçal violento. Em Roma havia escravos pedagogos, que ensinavam os meninos da casa, e outros com um estatuto quase familiar – mas, sempre, presos a uma servidão que não podiam contestar e que eventualmente lhes custava violências e a vida.

Na civilização ocidental, os portugueses são geralmente creditados por ser os maiores esclavagistas. Considerando o número de africanos transportados para as Américas, não contabilizado, mas avaliado, será porventura verdade. O Infante Dom Henrique, que era sobretudo um comerciante de visão global, negociava escravos. Mas também é verdade que todos os países europeus os tinham para as tarefas consideradas menores. Nunca foram tantos como nas Américas ou África, porque a economia europeia não precisava tanto ao trabalho agrícola intensivo, do tipo que se praticava noutros continentes.

A efeméride que agora se relembra, foi a chegada dos primeiros “vinte e tal” escravos negros a Point Comfort, na Virgínia, em 1619, trazidos de Luanda por um corsário inglês. 350 escravos tinham sido embarcados no navio negreiro português São João Baptista, com destino à colónia espanhola de Vera Cruz. Foi atacado por dois navios corsários que ficaram com alguns. Os barcos ingleses que saquearam o português pertenciam ao Conde de Warwick, inimigo declarado de católicos e espanhóis, e navegava com a bandeira holandesa. Portanto, no que toca a responsabilidades, todos são culpados – menos as vítimas, evidentemente.

Calcula-se que entre 1618 e 1620 os portugueses tenham exportado cinquenta mil escravos, alguns prisioneiros de guerra, outros vendidos pelos seus inimigos. Porque, convém lembrar, não foram os portugueses que inventaram a escravatura em África; foram os próprios africanos que se escravizaram entre si, nas constantes guerras tribais. Quando os portugueses chegaram a África subsaariana, há muito que os mouros traficavam negros e inimigos.

Contudo, esta data de 1619 parece que não é correcta. O primeiro escravo chegou Florida em 1513, levado pelo espanhol Ponce de Leon.

Os colonos estabelecidos nas Américas também escravizaram os índios naturais, mas com piores resultados porque eram menos resistentes ao trabalho brutal e preferiam morrer a viver na escravidão. No Brasil, os portugueses começaram por comprar escravos aos próprios nativos, passando depois a arrebanhá-los eles próprios, para finalmente se voltarem para a importação de africanos. Até no Japão compraram aos senhores locais, e no século XVI havia escravos japoneses e chineses em Lisboa, especialmente raparigas. Os japoneses, por sua vez, escravizavam os coreanos.

Com a evolução da nossa cultura, a escravatura acabou por se considerar uma abominação. Nos países europeus foi abolida gradualmente, em algumas décadas. Geralmente havia uma primeira legislação que tornava livres os filhos de escravos, depois podiam comprar a sua liberdade, e finalmente tornou-se ilegal. A Grã-Bretanha proibiu-a em 1807 no seu território, mas continuou a praticá-la nas colónias até 1843. Contudo, sentia-se no direito de se apropriar dos navios negreiros árabes, portugueses e espanhóis, numa mistura de falsa piedade e interesses estratégicos. Os portugueses proibiram o tráfico em 1781, por decreto de Pombal, mas não proibiram a escravatura em si, que só terminou efectivamente em 1869.

Nos Estados Unidos a questão era muito mais complicada, uma vez que a economia dos estados do Sul dependia do trabalho escravo. Só uma guerra civil violenta levou à abolição efectiva, em 1865.

A ideia vaga que temos é que a escravatura pura e dura – sob formas mais sofisticadas, já lá vamos – acabou durante o século XIX. Como se os povos deste mundo, ao fim de milénios a escravizarem-se uns aos outros, de repente, no final de 1900 anos da Era Cristã, abrissem os olhos para a sacralidade da vida e não cometessem mais tal abominação.

A efeméride de 1619 é uma oportunidade de chamar à consciência uma prática aberrante, mas não mais do que isso. Multiplicam-se os estudos, ensaios e teses sobre quando, como e porquê se escravizava, e sobre as consequências sociais e pessoais para as vítimas e os seus descendentes. Os efeitos da escravatura nos Estados Unidos reflectem-se ainda hoje na educação e nos cuidados de saúde, segundo umas análises muito interessantes publicadas no “The New York Times”. Uma das autoras, Nikole Hanna-Jones, considera que os ideais expressos na Constituição de 1787 eram falsos e que os negros norte-americanos têm lutado em vão para torná-los verdadeiros. Mathew Desmond afirma que “a brutalidade do capitalismo americano começou na plantação” e Linda Villarosa acha que as diferenças étnicas que justificaram a escravatura ainda são um credo dos médicos de hoje. Jamelle Bouie vê na fundação do país a assunção de que algumas pessoas merecem ter mais poder do que outras. Estes e outros ensaios analisam a escravatura com muito mais sofisticação do que foi feito até hoje e provam que o problema não só foi fundamental no passado como continua a manifestar-se na herança que deixou para o presente.

Chega-se à constatação assustadora que a época da escravatura não é correctamente ensinada nas escolas, quer por um preconceito que perdura, quer pelo incómodo em falar no assunto. Embora esta situação se aplique especificamente aos Estados Unidos, não há como não admitir que é semelhante ao resto do mundo; como dissemos, a escravatura do passado ainda incomoda o presente. E, oficialmente, não acabou há muito tempo; na década de 1960 a Arábia Saudita tinha mais de 300 mil escravos. O último país a proibi-la foi a Mauritânia, em 2007. Isto para não falar da que se continua a praticar, mesmo onde é ilegal.

Um relatório da Walk Free Foundation, publicado em 2013, mostra que a Índia tem cerca de 14 milhões de escravos, seguida pela China (2,9 milhões), Paquistão (2,1 milhões), Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia, República Democrática do Congo, Mianmar e Bangladesh.

E assim chegamos às formas mais sofisticadas de escravatura que se praticam hoje. Quando um trabalhador no Vietname, por exemplo – um país que lutou uma guerra para criar um regime socialista igualitário – trabalha 12 horas por dia por um salário de sobrevivência e não tem outras opções, não será um autêntico escravo?

A eliminação de dois dos requisitos da definição de escravatura, o confinamento e o não pagamento, é apenas uma maneira hipócrita de ocultar situações que efectivamente se mantêm sob outra aparência. Para não falar da forma pura e dura, “tradicional”, que prossegue intacta em muitas regiões do globo, sem sentir necessidade de se justificar. Enquanto certos países estudam a escravidão ao nível universitário, como um facto histórico complexo, outros praticam-na ao nível mais básico, hoje como há milhares de anos.

As datas que representam atrasos e progressos são marcos históricos afinal sem qualquer significado; os homens continuam a escravizar-se, praticando uma instituição abominável com a mesma naturalidade com que formam família, criam negócios ou fazem férias.

Sim, tem de se falar da escravatura. Não só para compreender e purgar o passado, como também, e sobretudo, para melhorar o futuro. O mais provável é que nunca acabe, mas pelo menos que tenhamos consciência dos selvagens que sempre seremos.