Jovenel Moïse tinha assistido em casa, em Petion Ville, um dos cerros na periferia da capital, Port-au-Prince, ao longo desafio das meias-finais da Copa América em que a Argentina eliminou a Colômbia (3-2 nos pénaltis). Tinha as luzes apagadas por causa da invasão de mosquitos e as janelas, com redes mosquiteiras, abertas para que entrasse alguma aragem da noite que amenizasse o muito calor intenso. 

Pouco passava da uma da madrugada quando, naquele bairro da escassa população que vive com alguns recursos, se ouviu uma voz a gritar em inglês, por megafone, “esta é uma operação da DEA (Drug Enforcement Administration, polícia do narcotráfico nos EUA), que ninguém saia de casa ou é abatido!” Era uma impostura.

Sabe-se que era um comando paramilitar com 28 homens fortemente armados, transportados em três jipes e duas carrinhas e que vestiam falsos coletes da DEA. Entraram na moradia onde vivia o presidente, alguns ficaram a bloquear os 10 homens da guarda presidencial – vários terão sido apanhados a dormitar – e outros entraram na residência, amordaçaram e amarraram os pés e as mãos de uma empregada que lhes apareceu e, ao entrarem no quarto do casal Moïse, dispararam de rajada. Vizinhos, habituados aos frequentes tiroteios na cidade, contam que desta vez foi diferente, parecia uma guerra, com fogo prolongado. O presidente ficou morto ali, com o impacto de 12 tiros de duas armas, uma delas de grande calibre, na cabeça, no peito e na anca. A mulher foi baleada nos braços e no peito, sobrevive, em estado crítico, num hospital de Miami para onde foi levada em duas horas de voo num helicóptero.

Sabe-se que 19 dos 28 homens do comando paramilitar de matadores estão identificados.Tinham-se escondido num edifício abandonado da embaixada de Taiwan (o Haiti preferiu o relacionamento diplomático com a Formosa, sacrificando a China) mas terão sido denunciados. Cercados, quatro foram mortos e sete estão presos. Os outros conseguiram escapar-se.

Todos os sete detidos são colombianos. O governo de Bogotá identificou um desses membros do comando paramilitar como ex-tenente coronel que deixou a Colômbia para trabalhar na segurança de famílias abastadas na República Dominicana. 

Este assassinato do presidente do Haiti é um crime político ou um ajuste de contas que mete gangues mafiosos? O mistério subsiste. Várias hipóteses estão a ser investigadas. O método do crime e o tipo de armamento utilizado privilegia a suspeita de gangues do narcotráfico, em vingança por alguma eventual traição.

Mas o presidente assassinado tinha muitos inimigos na áspera vida política do Haiti e muitas acusações em voz alta. O nome de Jovenel aparecia em histórias de corrupção envolvendo petróleo da Venezuela e por, em quatro anos de presidência, ter deixado que proliferassem no Haiti gangues que fizeram do país um entreposto do tráfico de drogas.

Especula-se que um médico haitiano há duas décadas a residir em Miami, Emmanuel Sanon, teria aspirações ao poder no Haiti e aparece entre os suspeitos de mandante do assassinato. Ele tinha aterrado há um mês em Port-au-Prince com um grupo de seis colombianos como escolta pessoal. Está a ser investigado pelo FBI.

O vazio de poder com autoridade legal no Haiti é desesperante e concorre para o medo instalado no país. Há um primeiro-ministro, Claude Joseph, que assumiu o comando interino das instituições e que pediu a Washington o envio de uma força para estabilização do Haiti. 

A administração Biden está a ponderar como ajudar, mas é muito reticente a intervenções externas, ainda mais quando se trata de enfrentar gangues que têm o terreno armadilhado e o dominam. Há o traumatismo da má imagem que forças internacionais, designadamente os capacetes azuis da ONU, têm no Haiti: desembarcaram em larga escala na ilha com missão de socorro após o tremendo terramoto de 2010 e saíram por entre acusações de abusos sexuais e até de terem propagado a crise de cólera.

Mas Biden quer evitar a instabilidade numa ilha ao lado da Jamaica, das Caimão, de Cuba, das Bahamas e da costa da Florida. Também quer evitar uma nova onda de migrantes haitianos. É assim que os EUA ponderam intervir em modo que possa ser estabilizador. Uma equipa do FBI e da Homeland Security apoiam o Departamento de Estado no estudo do caso.

Por agora, a lei que se impõe no Haiti é a das máfias com diferentes pandilhas. Os gangues comandam.

O Haiti vive em crise profunda desde a independência. Esta terra foi a primeira ilha de escravos no mundo. Foram mandados para trabalho forçado nas plantações de cana-de-açúcar, café e algodão. 

Também foi a primeira terra a levantar-se em revolta contra o tráfico de seres humanos. Os escravos impuseram-se, em 1803, às tropas de Napoleão. Proclamaram a independência. Foi a primeira vez que um povo escravizado se libertou dos donos coloniais, mas o custo da liberdade tornou-se altíssimo. Passados 20 anos, a França, antiga potência colonial, obrigou com força militar, o governo da independência do Haiti a indemnizar os antigos senhores coloniais.

Assim, em 1825, o Haiti ficou mergulhado em dívidas que nunca mais deixaram de aumentar.

A desgraça haitiana agravou-se ao longo de três décadas na segunda metade do século XX. Foi o tempo dos Duvalier, pai e filho, Papa Doc, no poder entre 1957 e 1971, depois o filho, Baby Doc, também ditador, servido pelos esquadrões da morte Tonton Macoutes da polícia secreta, durante 15 anos, até ser derrubado por uma revolta popular em 1986.

Seguiu-se uma esperança com a eleição para presidente de um padre, Jean Bertrand Aristide, que prometeu e tentou a normalização democrática. Proclamava as ideias da teologia da libertação, o que lhe valeu muitos inimigos externos e internos. Foi duas vezes derrubado por golpes de estado, o último em 2004, que o levou para o exílio na África do Sul.

A história do Haiti tem sido feita com regimes ditatoriais e pseudo-democráticos e com governos incapazes, incompetentes ou corruptos, ou tudo ao mesmo tempo. O assassinado presidente Jovenel não escaparia a alguma destas etiquetas.

Um comentador analisava no fim de semana na rádio pública NPR, dos Estados Unidos da América, que “o Afeganistão ou o Líbano são hoje mais previsíveis que o Haiti.”

É assim que o Haiti, que foi a primeira ilha de escravos, continua a ser um país mergulhado nessa opressão, ainda que em modos de agora.