Num período que tem sido uma autêntica ceifa da morte para grandes ídolos – de David Bowie a Umberto Eco, só para citar os mediáticos mais opostos – quase passou despercebido o falecimento de Harper Lee. Mas a história desta rapariga do campo que se tornou uma autora de prestígio internacional vale a pena ser contada.

Nelle Harper Lee nasceu no Alabama, o “Sul profundo” dos Estados Unidos, ou seja, nas berças, onde o preconceito e o conservadorismo reinam de década para década. Em 1936, tinha ela dez anos, o pai defendeu em tribunal dois negros acusados de matar um branco. Ambos, pai e filho, foram enforcados, o que era previsível, apesar do Dr. Amasa Coleman Lee os defender com todo o empenho.

Nelle viveu toda a infância e juventude naquele nenhures, tendo feito os estudos normais até frequentar Direito na Universidade de Tuscallosa, sem se formar. (Para os menos cientes e para os radicais anti-americanos, convém talvez lembrar que os Estados Unidos já tinham, no século XX, mais universidades que o resto do Mundo.) Era uma rapariga com dois amores: a literatura e o pai, ao colo de quem aprendeu a ler.

Em 1956, sem nunca ter saído do Alabama, meteu-se a escrever um livro autobiográfico, centrado na vida do pai. Enviou-o para vários editores e num deles, a casa J. B. Lippincott, a editora Tay Hohoff achou que aquilo teria pernas para andar. Nelle foi para Nova York a ver se se lançava nas letras, e durante dois anos as duas discutiram ferozmente o que mudar e não mudar no livro, o qual, segundo Tay disse anos depois, era uma série de histórias interessantes sem nexo entre elas.

“Matar a cotovia” ficou 80 semanas na lista dos mais vendidos, foi traduzido para 40 línguas e já vai em 30 milhões de exemplares

Finalmente, em 1960 o livro saiu, com o estranho título de “To kill a mockinbird” – tão estranho que as traduções em português variam: “Matar a cotovia”, “Como matar a cotovia”, “A morte da cotovia”... Os brasileiros é que resolveram o problema; chamam-lhe “O Sol é para todos”.

O balanço é o que se sabe: ganhou o Pullitzer nesse mesmo ano (um prémio com nomeações muito mais acertadas que o Nobel), ficou 80 semanas na lista dos mais vendidos, foi traduzido para 40 línguas, continua a vender-se regularmente e, segundo o último cálculo, já vai em 30 milhões de exemplares.

Em 1962 foi passado para o cinema, com Gregory Peck a ganhar o Óscar pelo papel do herói advogado, Atticus Finch.

Nelle, que escolheu o nom de plume Harper Lee porque receava que lhe chamassem Nellie, confessou, nas pouquíssimas entrevistas que deu entre 1960 e o seu falecimento, que nunca esperou tal sucesso.

E porquê esse sucesso? A história é uma epopeia sobre a Justiça. Atticus Finch, o advogado, defende num tribunal de brancos racistas um preto acusado de violar uma branca. O que há de heróico nele é a crença de que a verdade é que interessa, e os direitos das pessoas é que têm de ser respeitados, e não nas jogadas e meandros escusos que um processo judicial normalmente substancia. Esta postura quixotesca, digamos, é um ideal muito entranhado na cultura americana – talvez mais entranhado quanto menos se prova viável.

Aliás, podemos dizer que é um ideal global, pois em todo o mundo as pessoas se identificam com a lhaneza de Atticus, que não olha a preconceitos nem a pressões para defender a verdade.

Lee escreveu alguns contos de menos repercussão e ficou amiga de Truman Capote, que ajudou durante as pesquisas para o seu famoso livro “A sangue frio”. Aliás, há um filme de Bennet Miller, de 2005, que relata essa viagem atribulada do escritor, representado por Philip Seymour Hoffman. Catherine Kenner faz de Harper Lee.

Em 1966 Nelle voltou para sua cidade natal, Monroeville, e só saía eventualmente, para receber os incontáveis prémios que entretanto lhe foram dados – o último por Barak Obama, em 2010. Entrevistas, o mínimo possível, mas o suficiente para dizer que não escreveu mais nada porque tudo o que queria dizer estava na “Cotovia” e que “é melhor ficar calada do que dizer disparates”.

Em 2015 a editora HarperCollins deu a bombástica notícia de que Lee afinal tinha escrito outro livro. Chamado “Go and set a watchman” – outro problema para os tradutores... – teve uma tiragem inicial de dois milhões de exemplares. Contudo chegou-se à conclusão de que foi escrito antes da “Cotovia”, embora se passe 20 anos depois, e há quem ache que se trata mais dum rascunho do primeiro do que de uma obra que valha por si. Lee autorizou a sua publicação, numa altura em que já estava quase cega e muito incapacitada – imagina-se a pressão da trupe que vivia à custa do seu sucesso, para desenterrar aquilo do baú da senhora.

Afinal, Harper Lee sempre teve razão, tudo o que queria dizer está naquele livro.

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