Uma autobiografia apresenta um problema ético; não se pode revelar a intimidade dos outros, mas também não é possível omiti-los ou mentir sobre eles. Disse-o à Maria Filomena Mónica, chocado com a ousadia dela ao contar no livro “Bilhete de Identidade” intimidades sobre pessoas conhecidas com quem privou. “Só se queixaram os que não estão lá”, retorquiu, lapidar. A resposta desarmou-me, mas não justifica a questão básica de respeitar a privacidade dos outros. E, é pertinente perguntar, qual o interesse de conhecer a vida privada duma figura pública?

No caso do Duque de Sussex, Harry Charles Albert David Mountbatten-Windsor, a publicação da sua autobiografia, “Spare” (“Sobressalente”, à letra) apresenta esse problema multiplicado a uma escala imperial, digamos. Os “outros” implicados são pessoas muito universalmente públicas, cujo estatuto exige uma imagem imaculada de bom comportamento. A sua “missão” é representar o Reino Unido e todas as virtudes que isso possa implicar: transparência cívica e probidade moral dentro dos cânones da Igreja Anglicana (cujo rei é a mais alta autoridade) e servir de exemplo de comportamento para os seus súbditos. Mostrá-los em cuecas a fazer o pino (literalmente, segundo Harry conta de Carlos III) apenas satisfaz a curiosidade mórbida da plebe anónima e talvez abale, um pouco, a a reverência às instituições.

Ao mesmo tempo que os ingleses e muitos cidadãos dos países das ex-colónias britânicas gostam muito dos “royals”, também têm uma perversa curiosidade pelos deslizes e escândalos da família, alimentados persistentemente pela imprensa cor-de-rosa - os chamados tablóides - que anda sempre à caça de casos, grandes e pequenos” que “manchem” a imagem imaculada das dezenas de filhos, netos, primos e cônjuges com estatuto real. Na era das redes sociais, dos boatos e da mexeriquice, há um manancial constante de críticas, justificadas ou não, aos “deslizes” de pessoas que vivem à custa do Estado ou das fortunas pessoais obtidas por rendas hereditárias de duvidoso mérito à luz dos padrões contemporâneos. Os Windsor são pessoalmente muito ricos, segundo as estimativas; valem 28 mil milhões de dólares, entre investimentos, palácios (Sandringham e Balmoral, entre outros) e rendas várias. Essas riquezas incluem uma coleção de selos raros avaliada em 100 milhões, obras de arte e objetos de valor inestimável, isenções de impostos e outras benesses impossíveis de calcular. Acresce ainda que beneficiam de subsídios estatais, despesas pagas e o usufruto de propriedades faraónicas, como os palácios de Buckingham, Balmoral e Kensington. Numa reminiscência de benefícios históricos, os bens pessoais e do Estado não estão claramente definidos, podendo dizer-se que a família tem à disposição um valor ilimitado de activos.

Surpreende, portanto, que o Rei Carlos III tenha dito ao príncipe Harry (estamos a adiantar-nos nas revelações do livro) que não tinha possibilidades de o sustentar com a mulher, Meghan.

Além de representar o Reino Unido e os seus súbditos, os “royals” não têm qualquer actividade produtiva. As suas funções, a que chamam eufemisticamente de “deveres”, constituem em estar presentes em cerimónias oficiais, serem convidados para inaugurações e festividades várias, e fazerem afirmações inócuas. Não têm nenhum poder político, limitando-se a receber formalmente os primeiros-ministros britânicos recém eleitos e os dignatários estrangeiros, e a lerem os discursos escritos pelo Governo.

Têm uma vida codificada ao pormenor e as suas actividades e propriedades são geridas por uma entidade ambígua discretamente conhecida como “Kensington Palace”, que trata de tudo, desde administração de rendas a relações públicas e anúncios oficiais. Só a gestão do palácio de Buckingham, incluído na “firma”, como é publicamente conhecida,  emprega 1.133 pessoas.

Além dos pequenos escândalos que regularmente arranham os “royals”, já houve casos em que membros do clã decidiram sair abertamente dos cânones que lhes são impostos. O acontecimento mais espetacular e de maiores consequências, que na época fez correr muita tinta e teve até influência na política do Reino Unido, foi em 1936, quando o Rei Eduardo VIII abdicou do trono para casar com uma plebeia norte-americana divorciada, Wallis Simpson, e ir viver com ela uma vida privada - luxuosa e privilegiada, fora do universo real. (Durante a II Grande Guerra, as simpatias do casal por Hitler levaram a que o Governo de Churchil os mandasse para as Bahamas, mas depois voltaram à sua vida high-society em Paris.)

Em 2010, Sarah Ferguson, divorciada do príncipe Andrew (filho de Isabel I) mas ainda duquesa de York, caiu numa armadilha dos tablóides e concordou em receber 500 mil libras para dar acesso à família real, ficando-se a saber que não conseguia viver com as míseras 15 mil libras anuais da pensão de alimentos. Antes disso, quando ainda era casada, foi apanhada numa fotografia num iate com o seu conselheiro financeiro a lamber-lhe os dedos dos pés...

Mais recentemente, foi o próprio príncipe Andrew que caiu nas bocas do mundo por se ter envolvido num escândalo de pedofilia numa festa do seu amigo milionário americano Jeffrey Epstein. A rainha pagou as custas judiciais do processo e a indemnização à ofendida, e o príncipe foi exonerado dos seus “deveres” representativos e apagado das cerimónias oficiais. Vive solitário (talvez) na coutada de campo do palácio de Windsor.

Quase ao nível do caso de Eduardo VIII foi a decisão do príncipe Harry, segundo filho de Carlos III e Diana Spencer, de casar com outra plebeia norte-americana, ainda por cima mestiça, Meghan Markle, em Maio de 2018. O irmão mais velho, William, casado com Kate, era o segundo na linha de sucessão de Carlos III, e Harry o terceiro. Por isso lhe chamam o “sobressalente”, aquele que seria rei se acontece-se alguma coisa a William; e por isso Harry decidiu dar esse título - “Spare” - às memórias. (Em Portugal intitula-se “Na sombra”)

Durante o noivado, casamento, e no protocolo posterior em que o casal desempenhou os “deveres”, vários deslizes tornaram público que os “royals” não viam com bons olhos a escolha de Harry, e que Meghan, uma actriz e activista americana, não estava muito satisfeita nem com o tratamento recebido, nem com o espartilho imposto pelos títulos, conferidos pela rainha, de Duquesa de Sussex, Condessa de Dumbarton e Baronesa Kilkeel.

Assim, em 2020 Harry anunciou que ele e Meghan abdicavam dos “deveres”, abandonavam a bolha real e iam viver para os Estados Unidos. Um embaraço para a família, mas a coisa podia ter ficado por aí.

Não ficou. A viver em Los Angeles, Harry e Meghan entraram imediatamente para o universo dos famosos, dando entrevistas sucessivas em que se queixavam amargamente dos vexames que tinham sofrido na Grã-Bretanha. Logo em Março de 2021 deram uma entrevista de hora e meia a Oprah Winfrey e a seguir fizeram um documentário na Netflix, sempre a contar em pormenor como a vida real era asfixiante e a família racista, preconceituosa e sobranceira.

Tornou-se evidente que essa ia ser a linha de conduta e modo de vida do casal: ser famosos por terem sido repudiados. As entrevistas seguiam em cascata, sempre insistindo na mesma tecla, a falta de apoio e compreensão dos “royals”.

Por fim - mas não finalmente - Harry lançou este mês o livro em que conta tudo, ao mínimo pormenor. Como seria de esperar, já era um sucesso antes de chegar às livrarias. No mundo inteiro, inclusive em Portugal, é um recorde de vendas.

Entre outros pormenores desagradáveis para os envolvidos, conta a maneira desastrada e fria como o pai lhe anunciou a morte da mãe, Diana; que ele e o irmão pediram a Charles que não se casasse com Camilla, que a família vazava sistematicamente para a comunicação social notícias que prejudicavam o casal; que os Windsor não tinham dinheiro para os sustentar e que iriam perder o apoio da segurança e outros privilégios; que William deu-lhe um empurrão que o atirou ao chão e não queria que ele fosse padrinho do seu casamento com Kate.

Há também histórias supérfluas e até caricatas; Harry garante que matou 25 inimigos no Afeganistão e que ficou com as partes íntimas congeladas numa viagem ao Polo Norte. E a moral da história: “Amo o meu país e a minha família, e amarei sempre. Apenas gostava que no segundo momento pior da minha vida, estivessem presentes para me ajudar.”

A pergunta que logo vem à cabeça é esta: agora, que está tudo dito e redito, o que se segue? Os “royals”, certamente incomodados e chocados, continuarão as suas vidinhas codificadas, sabendo que nada mudará. Os especialistas de Kensington Palace encarregar-se-ão das relações públicas saneadoras. O casal tresmalhado terá de encontrar outras fontes de rendimento, porque o assunto está esgotado.

E a moral da história só pode ser uma: os ricos e famosos são pessoas como nós, graciosos algumas vezes e mesquinhos noutras alturas - humanos, enfim.

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