Escapa-nos a profundidade da paisagem do luto neste longuíssimo último ano. Companheiros de toda a vida, os maridos, as mulheres, os filhos, os irmãos, os netos, tantos netos, tantos amigos. Em tantos casos, nem sequer foi possível um beijo ao longe, muito menos um último abraço, um carinho na cara ou na mão.
Uma das crueldades da Covid é a de nos ter separado a todos, abruptamente. Impôs a indignidade de não nos permitir a última despedida. O modo como o vírus se propaga, em ameaça permanente e invisível, de pessoa para pessoa, instalou de tal modo o medo de sermos infetados ou de infetarmos que barrou muito do cuidado emocional com quem a pandemia veio a levar e a quem ficou com o coração destroçado.
Temos descuidado tanto uns e outros. A memória daqueles que sucumbiram, após tão asfixiante sofrimento, e a amargura na vida dos que ficaram no luto.
São tantas pessoas. No registo português de óbitos por Covid-19 já são, neste 22 de março, 16 784 pessoas. Os números, ainda mais quando têm esta tremenda magnitude, são sempre uma medida imperfeita quando se trata de condição humana, fica por expressar a vida. Uma imagem da brutalidade de tudo isto: se os que a Covid levou fossem juntos num autocarro normal, cada um com 50 pessoas mais o condutor, seriam precisos mais de 325 para levar todos. Seriam quilómetros de fila neste doloroso registo.
Tanta gente que agora entra em casa e fica confrontada com o espaço vazio da pessoa que falta, às vezes mais do que uma – sabemos de casais que se foram em dias próximos -, tanta gente submersa pela dor da perda.
Em muitos casos não foi possível a cerimónia fúnebre em que se junta o consolo dos amigos. A ameaça de contágio impediu que, em conjunto, os amigos celebrassem aquela vida irrepetível que partia.
Num tempo não muito distante, os jornais tinham a página da necrologia. Quantas páginas seriam necessárias para este obituário? Há dias em que a Covid levou mais de 300 vidas. Agora, há uns posts no Facebook que logo ficam para trás.
Antes da Covid, no velório ou a fechar o funeral os amigos juntavam-se, acompanhavam-se uns aos outros para recordar a biografia daquela vida que partia, era possível sorrir com o relato de episódios partilhados, às vezes até havia vontade para levantar um copo de vinho em homenagem aquela pessoa que não iria voltar a estar.
Após tantas últimas despedidas perdidas, tanto ritual funerário impedido, tanto luto com mágoa confinada, falta-nos cuidar a memória coletiva mas também a individual de cada uma das vidas que a Covid levou e que seja um gesto forte de consolo aos enlutados. Uma celebração que também junte as diferentes religiões mas que esteja acima das religiões.
É devido que seja criada uma forma para celebrar e homenagear, agora e no futuro, todas e cada uma daquelas vidas, queridas, estimadas, neste tempo perdidas pela Covid.
É tempo de ser pensado um memorial físico, em pedra ou noutro material que perdure, que possa ser uma representação perpétua daqueles que em modo tão cruel como se fosse uma guerra nos ficaram em falta dura de suportar.
Mas é devido que façamos mais. Falta-nos criar uma plataforma que possa juntar todos os nomes. O nome de todas as pessoas cuja vida foi perdida para a Covid. Poderá ser um site que ordene, em sequência alfabética, o nome de cada uma destas agora quase 17 mil pessoas. E que ao clicarmos nesse nome possamos encontrar a reconstrução, numa biografia, da vida dessa pessoa. Que possam ser acrescentados os testemunhos de pessoas que sentem a perda.
E que, onde isso seja possível, o nome dessa pessoa perdida seja dado a um espaço, uma sala, quem sabe se até uma rua que tenha estado em ligação com a vida dessa pessoa.
Já poderíamos ter na toponímia de Lisboa uma rua com o nome da luminosa cientista Maria de Sousa. Uma rua, talvez um novo arruamento, junto ao CCB poderia celebrar o nome do arquiteto Vittorio Gregotti. A Póvoa de Varzim já poderia ter como em título para uma rua o nome do romancista Luís Sepúlveda. Ambos, Gregotti e Sepúlveda, eram estrangeiros mas que, como tantos outros que eram de fora, ficaram a fazer parte de nós.
Uma rua junto ao campo de futebol do Estrela da Amadora poderia ter o nome do enfermeiro Mário Veríssimo, uma vida a cuidar dos outros e a primeira morte conhecida por Covid em Portugal.
É tempo de serem pensados legados vivos. Quem avança para a criação de uma bolsa de investigação científica com o nome de Maria de Sousa? O Santander vai levantar uma iniciativa dedicada à solidariedade, com o nome de António Vieira Monteiro?
O quadro de números diz-nos, friamente, que nesta segunda-feira, 22 de março, um ano e uma semana após a primeira morte por Covid em Portugal, esta pandemia já levou 16.784 vidas. São pessoas. Imaginemos cada uma dessas pessoas. Falta-nos transformar estes números devastadores em histórias humanas.
Também nos falta um dia nacional de memória, para celebrar essas vidas que a Covid levou prematuramente. Uma celebração que não seja preenchida pelos políticos, mas que junte, desejavelmente com poesia, os melhores do país. Que possa ter músicas, imagens, palavras, gestos, em homenagem aos que morreram e em conforto a quem está no luto. Desejavelmente, com realização não só em Lisboa e no Porto, mas por todo o país.
Juntemos os melhores criadores e os sábios do sentimento para esta homenagem.
A memória não nos traz quem partiu. Mas celebra a vida dessa pessoa. E dá algum conforto interior a quem está em luto.
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