A Índia, todos nós sabemos, tem problemas milenares. Mil trezentos e sessenta e seis milhões de pessoas (em 2019) que falam 21 línguas (e 447 idiomas), separadas por um sistema de castas e com um PIB per capita de 6.161 dólares, mal distribuídos, espalhadas por três mil e trezentos milhões de quilómetros quadrados, não é tarefa fácil de gerir.

Nas cidades, algumas com mais de dez milhões de habitantes, as pessoas empilham-se em transportes inadequados e gigantescos bairros da lata; nos campos, vivem isoladas numa agricultura de subsistência, sem saneamento básico nem assistência médica. Os números são imprecisos; acredita-se que há pessoas que nascem, vivem e morrem sem nunca terem existência legal.

O clima, tropical com monções, também não ajuda a manter uma infra-estrutura básica. No entanto, a Índia tem um comércio e indústria florescentes, e os indianos são muito bem vistos em áreas de ponta, como a informática e a medicina. Contrastes.

Durante o período colonial, os ingleses mantiveram na ordem esta imensidão fazendo pactos com os marajás, que mantinham os seus privilégios a troco de não permitir perturbações na ordem social. O sistema de castas ajudava.

Com a independência, em 1947, tudo mudou, pelo menos oficialmente: acabaram os marajás e as castas, fez-se uma constituição democrática e igualitária e passou a haver um governo nacional e governos estatais, todos eleitos por voto directo. Esta mudança da Idade Média para a modernidade é atribuída a Mahatma Gandi, mas foi ajudado por uma elite urbana que, entretanto, se tinha formado na Grã-Bretanha e aspirava à maior democracia do mundo.

O primeiro trauma que a independência trouxe foi a divisão entre a maioria hindu e a minoria muçulmana, que levou à separação da Jóia da Coroa britânica em dois países eternamente rivais, a Índia e o Paquistão.

A região de Cachemira – três estados com 220 mil quilómetros quadrados – que tem maioria muçulmana mas é controlada pela Índia, tem dado origem a disputas permanentes e duas ou três guerras, sempre com resultados inconclusivos.

Sob a constituição parlamentarista de 1950 houve até agora catorze governos, mais ou menos sociais-democratas – mais ou menos porque o conceito de social democracia dificilmente se aplica a uma sociedade em que as castas, mesmo proibidas juridicamente, continuam a ter um papel preponderante nas relações entre famílias e pessoas. Contudo, a liberalização económica criou uma classe média urbana menos permeável aos preconceitos e permitiu um desenvolvimento económico sem precedentes. Entre as décadas de 1960 e 90 foi das economias que mais cresceram no mundo. Todavia, convém ter em conta que o desenvolvimento não foi igual para toda a população e a grande maioria não notará grande diferença entre os tempos coloniais e o século XXI.

A elite governante revezava-se no poder, segundo uma coreografia democrática com regras estabelecidas; não se pode dizer que os treze governos que precederam o actual tivessem diferenças de monta no que respeita à melhoria de vida das castas mais desfavorecidas.

Até que, em 2014, ganhou as eleições o partido Bharatiya Janata (à letra: Partido do Povo), dirigido por um membro das castas Ghanchi e Teli (isto é, classe média baixa) que parecia seguir todas as tradições consagradas, como o casamento arranjado pelos pais e a continuação do negócio de mercearia da família.

Ao ser eleito, por maioria absoluta, foi o primeiro Primeiro-Ministro nascido após a independência do país.

Em pouco tempo Modi alterou o seu estilo de governar, começando a favorecer abertamente os hindus e a hostilizar os muçulmanos, que ainda constituem uma minoria considerável. Em 2019, Modi subitamente resolveu ocupar militarmente a Cachemira, o que provocou um enorme mal-estar nacional e internacional.

Embora as instituições democráticas continuem a funcionar, o partido Janata tem vindo a ocupar posições no sistema judicial e a controlar cada vez mais a comunicação social, num estilo semelhante a, por exemplo, Viktor Orbán. Num país com as dimensões da Índia e com uma população basicamente despolitizada, é muito mais fácil fazer pequenas mudanças autocráticas, que passam despercebidas na cacofonia dos vários estados e diferentes jurisdições regionais.

A agressividade das forças armadas indianas não se limitou a Cachemira e no ano passado houve vários incidentes na fronteira com a China – se bem que, neste caso, seja difícil dizer quem foi o provocador. Mas Modi parece procurar situações que levantem o fervor nacionalista, apresentando-se como um líder providencial. Enfim, o habitual.

O que Modi nem os indianos esperavam foi a subida exponencial da pandemia nos últimos meses. Durante o primeiro ano, parecia que o país se ia sair razoavelmente da situação, com números proporcionalmente baixos em relação ao resto do mundo. Mas nos últimos dois meses a situação saiu completamente fora de controle; os números oficiais são mais de 24 milhões de casos e mais de 250 mil mortes. Mas os números não dizem nada do desespero que actualmente se vive na Índia. Relatos contam que se vive num clima de fim do mundo, com cadáveres a flutuar nos rios (pessoas que certamente não entram nas estatísticas), ruas pejadas de doentes deitados no chão e os hospitais completamente sobrelotados.

O problema mais premente nem tem sido o descaso no tratamento dos doentes, mas sim a falta de oxigénio. Há um mercado negro de oxigénio, os ricos têm salas todas equipadas em casa, com um bom fornecimento, enquanto os transportes com bilhas do gás são feitos sob escolta e muitas vezes atacados.

Apontam-se várias razões para este descalabro. Uma, certamente, foi a indecisão do governo, que mudou as directivas várias vezes. Por sua vez, os 24 estados em que o país está dividido também têm directivas diferentes ao mesmo tempo, ou directivas iguais em alturas diferentes. O resultado dos lockdowns, que só existem nas cidades, levaram a que os trabalhadores e as suas famílias, sem meios de subsistência pelo fechamento das actividades produtivas, resolvessem voltar às suas terras de origem, disseminando assim o vírus por todo o país. E se a estrutura sanitária é péssima nas cidades, nas aldeias é inexistente.

Neste momento não há fim à vista. Até as vacinas – e a Índia é o maior produtor mundial de vacinas – desapareceram dos centros, diz-se que para serem exportadas para países dispostos a pagar.

A questão indiana não é apenas uma questão indiana; nas últimas semanas a pandemia alastrou para o Nepal e o Butão, países igualmente sem estruturas sanitárias. Segundo a OMS, uma hecatombe destas proporções é um problema mundial, porque o trânsito internacional é imparável. Já existe uma estirpe indiana do Covid-19, que dizem ser “duplamente mutante”, o que poderá contornar as vacinas actuais. Não se sabe, mas há especialistas que têm dúvidas. E têm surgido no país mutações de todo o mundo, como a inglesa e a sul-africana. Até há casos da chamada “mutação de Manaus”.

Narendra Modi tem-se recusado a reconhecer o estado catastrófico da situação, pelo menos oficialmente; particularmente, com certeza que sabe o que se está a passar, mas não tem meios para travar o tsunami.

O que estamos a assistir é um desastre nacional que inevitavelmente terá consequências planetárias.

Cientes disso, vários países, desde a Alemanha à Rússia, têm enviado por via aérea carregamentos de oxigénio e equipamento diverso – mas as quantidades são insignificantes para um país com a população da Índia.

Neste caso não se trata do famigerado “efeito borboleta”. Será mais um efeito “elefante numa loja de cristais”.

Só nos resta apertar os cintos – e tomar a vacina, evidentemente.

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