A ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) apresentou um estudo sobre a relação das crianças, entre os 3 e os 8 anos, com os ecrãs, assumindo, no título, o boom digital referente ao tempo passado online. Tive um professor na faculdade que nos obrigava a ler um livro com uma passagem que me ficou na memória, relativa à televisão. O autor afirmava que esta era uma ladra do tempo e criada infiel, chamando à atenção para a forma como uma geração foi deixada sozinha de frente ao ecrã para se socializar e educar, enquanto alertava para a necessidade de contextualização e explicação daquilo que era transmitido na televisão.
Longe vão os tempos em que a televisão começava a meio do dia e em que, chegados a casa depois da escola, tínhamos desenhos animados na tv. As manhãs de fim-de-semana eram passadas com o Vasco Granja e aqueles desenhos animados que nenhuma criança entendia, mas a que assistia, ou o Eng. Sousa Veloso no TV Rural. Eram os tempos em que andávamos na rua até uma das mães vir à janela gritar “ó João, anda jantar”, em que nos esfolávamos, partíamos cabeças, éramos terroristas mas nenhum pai se queixava de sermos hiperactivos porque, normalmente, depois de regressarmos a casa, caíamos na cama para dormir, sem o excesso de solicitações dos ecrãs brilhantes de hoje. Não era necessariamente melhor, era apenas diferente, com mais bactérias e arranhões. Principalmente, menos alergias.
O estudo hoje apresentado indica que mais de 20% das crianças entre os 3 e os 5 anos, e mais de 60% das crianças entre os 6 e os 8 anos, acedem regularmente à internet. Se é um facto que há muitos aspectos positivos neste facto (estímulo à criatividade e imaginação, domínio de ferramentas multimédia, favorecimento da aprendizagem, …) e que estes recursos, quando bem utilizados, potenciam o aumento do conhecimento do mundo, também é verdade que, na maior parte dos casos, pais e professores (perdoem-me todos os que diariamente fazem um esforço por se manterem actualizados!) não sabem usar a internet como ferramenta de conhecimento, usando-a apenas como entretenimento. Por vezes duvidoso… É importante percebermos que esta nova realidade substitui a antiga cultura de pares, na qual as crianças estão em rede, num processo de integração e dinamização de laços sociais que contribuem para a construção da sua identidade. Contudo, num universo tão rico e diversificado, poderão fazê-lo desacompanhadas, sem a real noção dos perigos que esta realidade também representa, da diferença entre o real e o virtual ou da credibilidade das fontes de informação? Não. Essa será, em boa medida, a nossa tarefa e a da escola, ensinando a utilizar, a compreender a diferença entre realidades, sem depositar todas as esperanças num futuro meramente online.
Um dia, quando percebi que os maiores cromos da tecnologia não permitiam que os filhos crescessem rodeados de aplicações e ecrãs tácteis, pensei que saberiam, melhor do que qualquer um de nós, o que estariam a fazer. Deveríamos pensar neste aparente pormenor alternativo por uns minutos para concluirmos que, na maior parte das vezes, a culpa não é da tecnologia, é nossa. Usamo-la, hoje, como usaram a televisão antes da massificação do acesso à internet: uma ladra do tempo e criada infiel.
A criança não come, precisa de umas palhaçadas. Fazemos de palhaços. Não come, precisa de uma distracção, contamos uma história. E assim sucessivamente, até percebermos que é muito mais fácil ligar a televisão para a criança abrir a boca e comer sem refilar. Sem birra. Sem ‘não quero ou não gosto’, com os lábios semi-cerrados. Depois, percebemos que seria ainda melhor se estivesse a assistir aos seus desenhos animados preferidos, para ficar verdadeiramente absorvida, comer e calar. A isto chama-se último recurso ou preguiça. Não atiro pedras porque também eu já precisei de uma distracção para a criança comer mas, transformar uma criança numa espécie de amiba acrítica, que não sabe que alimentos está a ingerir, é ir longe demais. Como também é demais vê-los chegar ao restaurante, montar o kit multimédia, sentar as crianças e deixá-las ficar a olhar para o ecrã, ignorando o que se passa à volta. Para os pais é certamente um descanso, enquanto os resistentes ficam no embaraço da criança que mexe nos talheres, não se senta sossegada, quer comer pão, mexe nos patés, aponta e fala alto. Uma vergonha constante enquanto, na mesa ao lado, vemos outra criança, verdadeiramente bem comportada, sentada e sossegada. Anestesiada?
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