No dia 14 de Março, com o Reino Unido em choque pela evidência de que, mais uma vez, Putin tinha mandado executar um inimigo em território britânico, Jeremy Corbyn, Secretário-geral do Partido Trabalhista, fez uma intervenção no Parlamento absolutamente atípica no sistema político inglês.

Pelo menos desde as guerras napoleónicas que os parlamentares do Reino Unido têm o costume de se unir em torno de ameaças externas. Em caso de agressão ou de guerra, chegam a formar-se governos apoiados pelos dois partidos eternamente presentes no Parlamento, como foi o caso das duas guerras mundiais. A luta política entre Whigs e Tories – ou entre Trabalhistas e Conservadores, a partir da década de 1920 – não abrandava nos momentos de aflição, mas havia um acordo tácito de se unirem contra o inimigo externo. As críticas da oposição ao Governo de Sua Majestade mantinham-se, mas era mais para o acusar de tibieza ou ineficiência perante o estrangeiro. Nunca para pôr em dúvida quais eram os interesses do país.

Não foi essa a atitude de Jeremy Corbyn, ao recusar-se a condenar a Rússia pelo envenenamento do espião Sergei Skripal e da sua filha, Yulia. Disse que era preciso investigar mais – sendo que ninguém duvida da impossibilidade duma investigação a fundo sem a cooperação de Putin – e seguiu a linha de defesa russa, segundo a qual Moscovo precisa de receber amostras do gás letal para investigar. Ninguém lhe perdoou a atitude frouxa, nem a comunicação social, nem os seus próprios correligionários.

Depois de um “período de graça” como dirigente do Labour, após uma subida do partido nas eleições extraordinárias de 2017 (quando conseguiu 40% dos votos, com mais 30 deputados – o maior crescimento desde 1945),  Corbyn voltou a ser visto como um líder titubeante, por colegas e eleitores.

É uma atitude que à primeira vista não se percebe, dado que condenar os russos seria uma formalidade patriótica, e não os condenar só pode prejudicar o seu estatuto sem nenhuma vantagem aparente.

Mas percebe-se melhor quando se observa a trajectória do chefe da oposição e se conhecem as suas crenças. Corbyn representa a ala mais à esquerda do Labour, aquela que ainda vê a Rússia na perspectiva da URSS e da Guerra Fria. Os comunistas britânicos, tal como os comunistas da Europa continental, mantêm as simpatias por Moscovo do tempo em que Moscovo era o vórtex do comunismo, e militam no antagonismo contra os sistemas capitalistas, mesmo dos seus próprios países. Não conseguem perceber que a URSS socialista deu lugar a uma Federação Russa onde se pratica um capitalismo mais violento do que o dos países capitalistas (incentivado pelo Estado e sem regulação). Nem reconhecem que Putin é um autocrata de direita. O seu discurso é muito mais favorável aos valores religiosos do que em qualquer país europeu (com excepção da Polónia), sustenta e incentiva o mega capitalismo (os famosos oligarcas russos) e critica asperamente a “decadência ocidental”, evidente na aceitação da homossexualidade e permissividade e na dissolução da família tradicional.

Corbyn não vê nada disto. Vindo das lideranças sindicais, elegeu-se deputado em 1983 e sempre defendeu a renacionalização das grandes empresas e dos serviços públicos, como os caminhos-de-ferro e a energia. Participou nos movimentos pacifistas, propondo um desarmamento nuclear unilateral e pugnando para que o Reino Unido saísse da NATO. Continua favorável ao regime cubano e ao bolivarianismo de Chavez e Maduro.

No entanto, e na linha dos comunistas actuais, tem pudor em afirmar-se marxista. Quando um jornalista lhe perguntou abertamente, deu esta linda resposta: “Realmente essa questão é interessante. Há muito tempo que não penso nisso. De facto não li tanto Marx como devia. Li bastante, mas não o suficiente.”

Em 2005, caiu a tão cantada “terceira via” de Tony Blair, e os trabalhistas entraram num período de convulsão, acabando por voltar às suas origens mais sociais. Em 2015, Corbyn conseguiu vencer um líder inócuo, Ed Miliband e ultrapassar uma candidata e breve Secretária Geral, Harriet Harman. Começou então uma longa luta, que ainda dura, para levar o partido mais para a esquerda.

Mas o seu discurso entretanto tinha passado de moda e muitos trabalhistas já não se reviam numa filosofia pré-Blair. Em 2016, o seu gabinete sombra revoltou-se e os parlamentares trabalhistas deram-lhe um voto de desconfiança. Mesmo assim aguentou-se e continuou uma campanha suave mas persistente contra a União Europeia, mais por razões ideológicas do que patrióticas. Incomodavam-no as privatizações  impostas ou sugeridas pela UE e a escolha de um modelo capitalista e globalista. Votou no Parlamento contra todos os tratados, inclusive Maastritch (1993) e Lisboa (2008).

(Não deixa de ser curioso que durante décadas os marxistas é que eram os internacionalistas, e os capitalistas ligados ao nacionalismo. A partir da década de 1980, a situação rodou 180 graus e agora são os comunistas que se proclamam patrióticos, enquanto os neoliberais preferem a solução comunitária.)

No entanto, o que se notava mais na direcção de Corbyn é que não se dava por ela. Essa descrição culminou na campanha para o Brexit (23 de Junho de 2016). Corbyn era pela saída da UE, mas o Partido Trabalhista era a favor da permanência. A declaração oficial foi: “Nós, o Partido Trabalhista, somos maioritariamente pela permanência, porque acreditamos que a União Europeia trouxe investimento, emprego e protecção para os trabalhadores, os consumidores e o investimento.” Não podendo concordar com o partido, Corbyn foi de férias durante a campanha. Os trabalhistas praticamente não participaram na discussão, deixando o protagonismo da oposição para um partido nacionalista quase inexistente, o UKIP.

Depois da derrota, nova revolta dos militantes, agravada com fracos resultados nas eleições de Fevereiro de 2017.

O que salvou Corbyn foi o descontentamento do eleitorado com os Conservadores pelo modo como conduziram a campanha do Brexit e pela escolha duma líder muito fraca, representante da ala mais à direita do partido, Theresa May. Foi o que deu a inesperada subida do Labour, de que já falámos. Para governar, May teve que recorrer ao partido de direita da Irlanda, os Unionistas.

Corbyn parecia voltar à simpatia do eleitorado, sobretudo o mais jovem. Mas Corbyn, que no Parlamento cumpre os mínimos de dizer mal da indecisão do Governo sobre as minudências do Brexit – e a questão está nas minudências em que ninguém pensou, como a fronteira das duas Irlandas – também não apresenta soluções alternativas. Repete que o Brexit não pode prejudicar os trabalhadores – referindo-se aos britânicos, pois os cerca de 13% que são estrangeiros não lhe interessam.

O Reino Unido está assim numa situação inédita na sua História: tem um Governo incompetente e uma oposição igualmente atarantada. Vale a pena citar Camões: “Fraco rei, que faz fraca a forte gente”.